Opinião
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18 de abril de 2023
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07:30

La vida descalzo – de pés descalços na vida (Coluna da APPOA)

Alan Pauls (Foto: Ricardo B. Labastier/Divulgação)
Alan Pauls (Foto: Ricardo B. Labastier/Divulgação)

Robson de Freitas Pereira (*)

O final do verão, a passagem da Páscoa, a chegada do outono fazem ambiente para um livro recém lançado: “a vida descalço”, de Alan Pauls. Autor que se tornou amplamente conhecido no Brasil quando Hector Babenco adaptou para o cinema seu romance O passado, com Gael Garcia Bernal como protagonista. 

A edição original de “a vida descalço” é de 2006. Foi quando entrei em contato com a obra. Desde a primeira leitura fiquei fascinado. Todas as memórias de verão estavam alí. Até os veraneios que não vivi, mas que me reconhecia neles. Revivi então, parafraseando Enéas de Souza que afirma que ver é rever, ler é reler. Nesta releitura, um ato falho se insinuava: eu traduzia o título sempre como “de pés descalços”. Não entendia o porquê; talvez hoje alguns fragmentos ajudem a compreender a insistência.

Alan Pauls faz deste livro uma mescla de ficção, memória e ensaios. Onde sonhos, literatura e cinema estão finamente, melodicamente encadeados. Tiro o chapéu para este conhecimento da literatura ocidental e suas imagens em movimento. Cada capítulo introduz e mescla um tema e o seguinte, como uma composição em que cada movimento nos envolve e conduz. Os capítulos (não numerados), as seções são divididas por fotografias do acervo pessoal do autor. Todas de uma criança ( o autor) em veraneio. A maioria sozinho, outras vezes acompanhado por amigo (ou irmão) e pelo cachorro (fiel companheiro permanente ou ocasional). Filhos de pais separados, estas são férias na companhia do pai. Por isso estão os três sempre juntos, personagens dos fevereiros passados em Cabo Polônio, Villa Gesell, com esta geografia e topografia que nós aqui do sul conhecemos tão bem: mar aberto e vento. Na capa da edição argentina (editorial Sudamericana) comparece a única fotografia dele com o pai. Numa destas cenas, onde a criança goza de ser sustentado pelo pai, como numa proeza de circo.

“Sonha-se muito na praia”, o verão possibilita sonhos, começa Alan Pauls.  Aqui a sutileza e artimanha do autor. Da primeira vez que li, só pensava nas memórias do menino que cresceu. Depois prestei atenção nas datas. Sonho de 28 de fevereiro 2005 (a edição é de 2006). Sonho atual? Depois entram as memórias? Autor joga com o leitor. Fevereiro é nosso mês de férias aqui no sul. Agora menos. Parece que somente nós y los hermanos insistimos em fevereiro como principal mês de férias. Mas a articulação sonho- filme está estabelecida. Os portenhos e brasileiros que gostam de aventurar-se por Buenos Aires vão se reconhecer mais ainda: cine Roxy, Las Heras y Aguero; Rivadávia y Rincón era a direção de uma das linhas. E muitas outras referências ao longo do texto. Porém, permanece uma pergunta: por que se sonha tanto na praia? “Para compensar os efeitos de uma certa síndrome de abstinência”. Pelo menos em Cabo Polônio, como o autor situa.

Cabo Polonio “não tem nada”- se a submetemos ao ditames do turismo e consumo atual, somente a praia e a possibilidade de sonhar. Território “livre de imagens”. Porém, atenção, as imagens da realidade estão presentes, mas funcionando como as miragens no deserto que servem a esta Outra cena de um mesmo espaço. Conforme Alan Pauls, em parêntese psicanalítico: “As imagens não podem coexistir com o espaço: só aparecem quando o espaço real se dissipou no sono ou na alucinação.” ( no original: “…cuando el espacio real se ha desvanecido en el dormir o en la alucinación.”). Talvez para podermos adentrar na história da invenção dos balneários- e seus preconceitos: Villa Gesell. Final dos anos 60, os hippies e seus inventos saíram pelo mundo buscando mar e areia selvagens para desfrutar e desbravar. Hvar, Santorini e Ibiza, Cancun, Belize ou  Cabo Polônio e …Villa Gesell. Toda praia é sempre virgem para quem pisa em suas areias pela primeira vez, renovamos esta experiência cada vez que pisamos descalços na areia.

Desdobrando seu talento de ficcionista e ensaísta- parêntese para mencionar um ensaio sobre Roland Barthes na apresentação da edição argentina do seminário “Como viver juntos”, onde Pauls demonstra que seu conhecimento do escritor francês é minucioso, a história de Villa Gesell é a melhor síntese de ficção, memória e ensaios dos já escritos. Do ideal de pureza a assunção de costumes kitsch. Para eles- veranistas argentinos, os bávaros e referências alemãs que traziam a mitologia do frio para este local de veraneio: nos cardápios dos restaurantes, na arquitetura alpina e nas conversas de vogais com diérese (!) (encontro vocálico: ditongo que se transforma em hiato na pronúncia. 

Nos faz recordar dos nossos lugares de veraneios, os que vivemos e os que nunca vivemos , mas por instantes imaginamos e criamos essa realidade imaginada. O boliche do centro de Capão (quem viveu nos anos 70 e até meados dos 80, quando foi demolido, vai se lembrar), pode aparecer na página 26, onde se descreve o Combo Park com suas mesas de pingue-pongue, seus pebolins (fla-flu) de ferro, seus fliperamas e suas pistas de boliche.

Seguimos neste caleidoscópio de memórias íntimas e inventadas com a cumplicidade do leitor. Assim as praias puras nunca são puras. Vide a areia, esta mistura de restos e sedimentações, materiais acumulados por milênios. O que buscamos nas praias e o que elas escondem/ apresentam talvez seja sempre algo perdido. Porém, insistimos, mesmo que a revelação dure somente um instante, fugaz, evanescente, como nossa memória que captura um detalhe e reconstrói uma história, se quisermos. 

A noção lacaniana de litoral compareceu alí com a definição de que elementos heterogêneos como mar, costa e areia estejam sempre em contato e murmurem e falem, nem que seja de forma lacônica. E os argumentos estão tramados com a literatura de Camus, de Patrícia Highsmith e o cinema de François Ozon e Michelangelo Antonioni. A obviedade da nudez e praia é revelada de forma direta, com auxílio de Camus que em 1938 escreveu esta obviedade: demoramos séculos para cobrir o corpo e bastou a entrada do século XX para descobrirmos que todos os corpos podiam estar (quase) nús no espaço da praia. A praia não pode democratizar a beleza, mas a nudez sim. Tudo está à vista.

O autor nos faz redescobrir cousas que víamos e não enxergávamos. Esta propriedade do olhar e do desejo. Onde a praia é também uma arena (areia) de lutas e confrontos que milagrosamente, por vezes, se apaziguam ou onde muitas vezes na imposição de um estereótipo somos confrontados com paródias de liberdade que impõem a coação em nome da transgressão e do desejo. Uma das mais leves: todo veraneio tem inumeráveis aventuras amorosas e/ou sexuais em seu repertório. Maneira de afirmar que  desejo sexual é formatado pela cultura. Não tem nada de instintivo: depende da história que se conta ou que nos contam. O autor implica com uma forma específica: aquelas que insistem em afirmar que areia e água do mar são os lugares ideais para relação sexual. Não pode ser verossímil. E o exemplo cinematográfico princeps é a cena do beijo à beira mar de Burt Lancaster e Deborah Kerr em  A um passo da eternidade – crítica e humor irônico. Outro exemplo do erotismo na praia que o cinema nos formou: James Bond (Sean Connery) espiando extasiado a saída do mar de Honey Rider (Ursula Andress), numa cena icônica de “O satânico Dr. No”. Mais uma vez, a imagem do corpo, do mar e do cinema performatizando nosso olhar. Magistral interpretação da renovação do “encontro” entre o estrangeiro e o nativo. Agora a “ nativa” sai do mar e o turista a admirar extasiado atualiza e inverte a cena da chegada (ou invasão) do colonizador na América, onde os (as) índias esperavam na areia o desembarque daqueles estranhos cheios de roupas e armas.

Haveria muitos outros temas, exemplos da força utópica da praia. Só para citar: o escritor na areia do mar no inverno, onde Dashiel Hammet e Lilian Helmann são paradigma (interpretados por Jason Robards e Jane Fonda em Julia) desta fantasia do isolamento do frio e da praia como motores da criação literária. Ficções.

Quando estamos de pés descalços temos a experiência da liberdade, mesmo que por instantes. Metáfora da infância perdida. Memória da recuperação dos momentos em que podemos nos apaziguar com o passado e relançar um futuro. E reconhecer as escolhas que fizemos, inclusive aquelas que nos fizeram priorizar a leitura e seus mundos, a matéria de que são feitos os sonhos. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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