Opinião
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4 de abril de 2023
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08:18

Considerações sobre o novo arcabouço fiscal (por Maurício Weiss e Róber Iturriet Avila)

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Maurício Andrade Weiss e Róber Iturriet Avila (*)

Antes de avançarmos sobre as análises do regime fiscal proposto pelo governo, cabe uma breve introdução com questões gerais sobre os limites do gasto público. Seguindo a perspectiva da Teoria Monetária Moderna (MMT), um Estado que emite moeda de forma soberana não possui limites financeiros, pois ao gastar ele cria moeda e o pagamento de tributos é feita a posteriori. Então, de maneira lógica, o setor privado que precisa do gasto público para ter a moeda necessária para pagamento de tributos e compra de dívidas e não o contrário. Desta forma, o Estado não teria restrições financeiras para gastar, apenas as autoimpostas, como os regramentos fiscais. Por outro lado, os limites concretos para os gastos estão relacionados com condicionantes reais, como disponibilidade de mão de obra, capacidade ociosa, estrutura produtiva, situação externa, entre outras. 

Keynes, por sua vez, ao mesmo tempo que defende que o Estado deve priorizar dinamizar a renda e o emprego e que ao estimular a economia o Orçamento cuidará de si mesmo, como destacado por adeptos da MMT, não era adepto às finanças funcionais, como trazido por Terra em reportagem ao Valor Econômico. Isso se deve especialmente a importância das convenções e da confiança do setor privado na moeda estatal, cuja demanda ultrapassa em muito a mera necessidade de pagamento de impostos.

Em termos de gestão fiscal, Keynes ao longo de suas obras defende que o setor público deva exercer um papel de reduzir as incertezas inerentes à dinâmica econômica e ao mesmo tempo de estimular à economia em momentos de enfraquecimento da demanda, especialmente (mas não exclusivamente) quando a política monetária não for capaz de dinamizar os gastos privados. Deste modo, um regime fiscal ideal deveria ter como característica maior previsibilidade para não trazer incertezas adicionais e permitir que tenha um comportamento anticíclico, isto é, de ampliar seus gastos em momentos de instabilidade e de reduzir em momentos de elevado crescimento econômico. Mais especificamente, ele sugere que se crie um orçamento corrente (ordinário) que deva ser predominantemente superavitário e um orçamento de capital que deva ser não apenas anticíclico, como também um mecanismo constante para o desenvolvimento econômico e garantia do pleno emprego.

A partir desse contexto se observa que o período recente tem a ensinar em termos de más regras fiscais. Durante muito tempo no Brasil, o principal parâmetro era o superávit primário: o resultado entre receitas e despesas primárias. Entretanto, quando há crescimento econômico, as receitas crescem muito, quando há recessão, as receitas despencam. Nessa medida, na fase recessiva, a regra impunha um corte de gastos, o que contribui para que haja mais desaceleração econômica e menos arrecadação ainda. Na fase ascendente, há farto espaço fiscal, então podem ocorrer excessos.

Entre 2006 e 2010, a atividade econômica experimentava uma espécie de milagre, alto crescimento, muita receita. Na época houve uma expansão na estrutura burocrática, recomposição de salários e de servidores, ampliação de instituições. Em 2015-16, o ciclo virou, houve forte recessão, o que quer dizer perda considerável de receitas e a regra impunha cortes de gastos, ou seja, mais crise. Adicionalmente, a expansão da estrutura burocrática é uma despesa constante, que ficou mais salgada na fase descendente. Nessa medida, os cortes de gastos acabam sendo nos investimentos públicos, que possuem elevado efeito multiplicador sobre o crescimento econômico, tanto para cima, quanto para baixo. Não resta dúvidas a quem entende do assunto que os cortes de gastos no início do segundo mandato de Dilma contribuíram para a forte recessão. Tudo isso está relacionado com a regra fiscal existente à época ser pró-cíclica, o superávit primário.

Como tudo o que é ruim pode piorar, em 2016 foi aprovada a lei do Teto de Gastos, que impôs redução de gastos de forma contínua, também em educação e saúde, ao contrário do que diziam seus defensores à época. Quis o destino que a pandemia vivida provasse a todos que a lei do teto era disfuncional e deixou-nos com o pires na mão no momento em que mais se precisou de ação estatal nas últimas décadas.

O novo arcabouço fiscal é uma regra mais flexível e até inovadora. Basicamente, ela garante que sempre haverá aumento da despesa real em pelo menos 0,6% e não permite aumento maior do que 2,5% nas despesas correntes. Essa medida é acíclica, quando as receitas caírem, o governo continua elevando (mesmo que de forma não acentuada) as despesas. No período da bonança, haverá um limite de aumento para que não haja excessos que se tornem de difícil pagamento na fase descendente. 

Tem surgido considerações críticas ao limitador de 2,5% de crescimento real nas despesas correntes, embora de fato impeça grandes incrementos, a convenção atual não parece ser favorável ao aumento do tamanho do Estado e elevação dos impostos, tão pouco da ampliação da dívida pública. Por não serem medidas constitucionalizadas, ajustes nesses patamares exigiriam maioria simples e poderiam ser implementados em um futuro breve, especialmente com novo congresso. Ademais, há que se considerar que o crescimento econômico nas últimas décadas se assemelha a tal cifra.

Ainda sobre esse aspecto, a base de crescimento se dá em relação a um orçamento que já foi aprimorado pela PEC da transição, a qual permitiu que, já em 2023, o orçamento cumprisse não só o bolsa família de R$ 600, algo que o orçamento deixado pelo governo anterior não possibilitava, mas que ampliasse o gasto médio para R$ 703 e abrangesse mais de 21 milhões de pessoas, aumento real do salário mínimo (embora menos que o esperado) e redução da fila do INSS. Também permitiu uma recuperação do investimento público na ordem de R$ 75 bi, mesmo que esse ainda seja muito inferior ao necessário. 

A nova regra prioriza investimentos e estabelece um piso para esses. Os sucessivos ajustes fiscais recentes levaram os investimentos públicos para os níveis mais baixos desde que há contabilidade, em 1947. Em termos de dinâmica econômica, isso é péssimo, o que ajuda a explicar o longo período de recessão e estagnação. Os fatos demonstraram que cortes de gastos públicos são recessivos, sobretudo em investimentos.

De outro lado, o arcabouço está amarrado à receita: as despesas podem crescer até 70% da variação da receita. Esse fator é pró-cíclico e limita o provimento de serviços públicos. Contudo, se o crescimento da receita for maior do que 2,5%, o excedente poderá, a depender dos condicionantes do resultado primário, ir para investimentos, despesas que não são perenes e são altamente dinamizadoras.

Então, o regime prioriza investimentos, mas também não permite que haja redução real da despesa total, mesmo que com pequena margem: os ajustes fiscais que aprofundam a recessão estão encerrados.

Outros aspectos positivos do arcabouço é que não há uma meta direta em relação aos níveis de endividamento. Isso é um aspecto fundamental pois essa dinâmica depende de elementos que não estão sob gerência da política fiscal, a exemplo da taxa básica de juros e do crescimento econômico. 

Todavia, alguns elementos desse regime merecem maior reflexão, a começar pela amarra à receita. No período recente houve elevação extraordinária de receita, o que não deve se repetir, como privatizações, concessões, gordos dividendos da Petrobrás, aumento de receita indexado ao preço dos combustíveis e da energia, redução e devolução de recursos do BNDES. A nova regra torna quase imperativa a elevação de receitas.

O crescimento econômico puxa as receitas para cima. Para o período à frente, haverá receitas crescentes de royalties da exploração de petróleo. Outras alternativas são: o combate à sonegação, à elisão, à evasão, maior oneração aos mais ricos, tributação de aplicações financeiras isentas, tributação de dividendos e revisão de renúncias de receitas.

Nos últimos anos, houve aumento de renúncias de receitas, as quais podem ser revertidas. Tanto na literatura internacional, quanto na doméstica, os estudos sobre os efeitos multiplicadores sobre demanda, emprego, crescimento e arrecadação têm apontado que reduzir impostos não surte o efeito desejado, sendo aconselhável sua reversão. Em 2022, apenas da União, a cifra alcançou 3,42% do PIB (14,43% da arrecadação). Aqui há muito espaço para ampliação de receita (CHIEZA, LINCK, 2022). Algumas isenções merecem cuidado, como as sobre alimentos e microempresas, outras, como para setores específicos para incentivo de produção podem ser reoneradas.

Um aspecto preocupante em relação à receita é que em anos de baixo crescimento, a tendência é de a receita cair e consequentemente não se atingir a meta de superávit primário, fazendo com que no ano seguinte a despesa se limite a 50% do aumento da receita e não aos 70% usuais. Nesse sentido, a regra proposta não permite uma “verdadeira” política anticíclica, isto é, ampliar as despesas, especialmente o investimento para estimular a economia a tal ponto que se atenue a queda na renda. Apenas evita que se acentue o problema, como era na regra do superávit primário anterior. 

Elencamos alguns elementos que a regra poderia ser aprimorada para ampliar investimento de forma mais rápida e ampliar os gastos estagnados nos últimos anos: 

1) Metas de superávit mais “tímidas”, assim permitiria que os potenciais aumentos excepcionais de receita fossem transformados em maiores investimentos, tão necessários. Ou melhor, tornar a meta de superávit como um alvo a ser perseguido, mas que não elevasse os prejuízos. A combinação das metas de piso, teto e os limites em relação a receita já seriam suficientes. 

2) Deixar claro que esse recurso de investimento possa ser alocado para anos futuros, permitindo um maior planejamento e não investimentos feitos às pressas. 

3) Transição de metas de crescimento das despesas, iniciando com 100% do aumento das receitas e reduzindo até 70% no último ano do governo, assim poderia acomodar o excessivo enxugamento feito nos anos recentes em certas áreas.

3) O piso do investimento deve ficar fora do piso de 0,6% do crescimento da despesa, caso contrário prejudicará a despesa corrente em termos per capita.

4) Caso se mantenha a meta de superávit primário, que não tenha o gatilho que reduza variação da despesa para 50% da receita, ou pelo menos somente quando o descumprimento ocorrer por 2 anos seguidos. 

5) Inclusão de um mecanismo que permita aceleração da despesa frente a um choque negativo na economia, cujos critérios podem ser formulados pelo congresso.

Concluindo, embora existam limitações concretas para que o Estado seja um maior dinamizador econômico e possa atuar mais fortemente de forma anticíclica, não nos resta dúvida que o arcabouço proposto é superior ao teto de gastos e possui importantes avanços em relação às regras anteriores, como procuramos demonstrar acima.

(*) Maurício Andrade Weiss e Róber Iturriet Avila são professores do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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