Opinião
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14 de março de 2023
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07:00

O belo hoje: “O liso é a marca do presente” (por Coluna da APPOA)

Jeff Koons, Balloon Dog (Jeff Koons Studio/Reprodução)
Jeff Koons, Balloon Dog (Jeff Koons Studio/Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Muito me espantou mas também abriu a curiosidade a afirmativa de Byung-Chul Han: “o liso é a marca do presente. É ele que conecta as esculturas de Jeff Koons, iphones e  a depilação à brasileira, como é conhecida a depilação total na Europa.”

Como encontrar a conexão entre matérias de universos tão diferentes? Iphones com depilação e ainda junto com Jeff Koons, com tudo de controverso que o cerca?

Essa é a frase de abertura de um dos livros mais recentes do filósofo nascido na Coréia do Sul mas de formação e exercício na Alemanha, conhecido por nós principalmente pelo seu Sociedade do cansaço. Agora se trata de A salvação do belo. Livrinho que poderia parecer despretensioso, mas que levanta uma forte discussão: a do belo hoje, como se apresenta sua noção e por onde podemos formular perguntas que ajudem a nos situar no contexto que é o do nosso tempo – era digital. 

A primeira frase, esta do liso e do fio que percorre os três elementos condensa a proposta que vai ser desdobrada. A depilação chamada à brasileira comparece pela afirmação de um corpo totalmente liso, contemporaneamente, como belo. Superfícies lisas, seja a pele ou os smart phones – dá o exemplo de um celular da LG que é flex, com uma capa que se autoregenera fazendo sumir qualquer rasura, arranhão ou risco, e que ainda por cima se dobra, se curva, não oferece resistência ao acoplamento com o corpo – no ouvido ou no bolso de trás da calça, onde se senta sobre.

Mas é quando este escrito sobre a estética no contemporâneo ( daí o interesse, para mim) chega no território polêmico da produção de Jeff Koons que a coisa fica mais dura. Aponta Koons como o artista mais bem sucedido da atualidade,  o mestre da superfície lisa. É irônico com o “bem sucedido”, e aqui temos nos bastidores todas as controvérsias em torno do artista. As obras mais caras no mundo atual, podendo uma obra chegar a noventa e um milhões de dólares (Rabbit). Criticado pelo apego ao lucro e a uma produção onde ele não encosta a mão ( e sim os funcionários de seu atelier-fábrica-linha de montagem), sua imagem de sorriso permanente e suas entregas adiadas ou não realizadas que geraram processos judiciais importantes, ele segue.

O que navega no conflito é que ao mesmo tempo produz coisas fascinantes ( bom, sabemos dos ingredientes do fascínio).  Como essas esculturas metálicas gigantes reproduzindo os cachorros feitos de balão, o Ballon Dog ou a Seated Ballerina ( de aproximadamente 14 metros) que antes da pandemia ficou um tempo exposta na frente do Rockefeller Center. Artista da cultura pop, fez capa do disco Artpop para Lady Gaga, e exposições de suas esculturas na cena das cidades mais cosmopolitas ao longo do mundo.

O que Byung-Chul Han quer marcar com isso do mestre da superfície lisa? Frente à escultura lisa e brilhante, ela funciona como um espelho, que o observador se veja espelhado na obra. “O Ballon Dog não é um cavalo de Tróia, não oculta nada.” “[…] nas esculturas polidas, de brilho intenso, a gente não se confronta com o outro, mas apenas com si mesmo.”

O ponto vai ser esse, de que com essa arte se convoca um encontro de certa forma egoico, de reafirmação consigo mesmo e com certa celebração infantil, mas um infantil que não encontra nenhuma rasura, contradição, fenda, por onde pudesse se produzir perturbação. Byung-Chul Han quer ressaltar o quanto a negatividade conta para a arte.  No ponto em que impacta, desacomoda, permite que algo se mova e que derrube, de certa forma, quem está ali, diante da obra. Que ela possa causar essa abertura de intervalo para que possa se produzir algo outro, novo. 

Se Andy Warhol também vem nessa linhagem da superfície lisa, bela, antecedendo Koons, ainda assim o autor marca a diferença, diz que Warhol tinha  ainda inscrita em sua arte a negatividade e a morte, dá o exemplo da série Death and disaster, que contava com essa discontinuidade, desastre como heterogeneidade radical. 

Questões a pensar, ao mesmo tempo talvez um Ballon Dog ou um Puppy gigante possa também interrogar, para além das intenções de seu criador… Me organizo para em maio fazer a experiência, em presença.

Vamos encontrar no texto muitos outros desdobramentos.  Byung-Chul Han aponta a dinâmica veloz dos sharing e likes como solidárias de uma positividade acelerada que navega com alto rendimento na comunicação enquanto superfície lisa. 

Vale a leitura que dialoga também com uma estética do velamento, do não-todo exposto na relação também a uma erótica, diferença do pornográfico, e da beleza como verdade. 

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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