Opinião
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22 de fevereiro de 2023
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14:31

O governo Lula na história já sem utopias (por Tarso Genro)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de encontro com dirigentes de centrais sindicais, no Palácio do Planalto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de encontro com dirigentes de centrais sindicais, no Palácio do Planalto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Tarso Genro (*)

O Brasil teve, com o esgotamento do regime militar, uma das transições mais cavalheirescas para a democracia, comparativamente às transições dos nossos países irmãos da América Latina. O regime militar que se esgotaria com a dúbia Lei de Anistia – com todas as características ditatoriais que continha , apoiado por uma vasta parte da sociedade civil e por um sólido bloco empresarial, permitiu, esmagado o dissenso revolucionário que brotara de diversas formas, uma transição negociada.

Esta desemboca numa Constituinte derivada que, se abriu as cortinas para a democracia política, não eliminou a possiblidade de tutela militar sobre o Estado. Sequer permitiu, portanto, que a extrema-direita castrense que integrava a sua estrutura de poder assumisse as suas responsabilidades perante os Tribunais Judiciais da própria História.

Essa extrema-direita é que volta, portanto, potencializada e “legítima” para ser hegemônica no governo Bolsonaro. O quanto a História se repete e o quanto as experiências de luta pela emancipação e pela democracia podem ser aproveitadas em outras épocas? Nem tudo, nem quase nada. Os movimentos fascistas, que se proliferaram depois da Primeira Grande Guerra, e a derrota posterior do nazifascismo tiveram influência na conformação dos regimes liberais democráticos do mundo ocidental, especialmente depois da primeira metade do século passado. A História se repetirá?  Sim, mas nem como farsa, nem como tragédia, certamente como mimese e caricatura: mais desbocada, mais reacionária, mais cínica e pretensiosamente mais violenta.

O que ocorre hoje no mundo – seguramente –  é mais trágico do que aquilo que ocorreu nos anos que precederam aquela hecatombe da humanidade, e transcorrerá também como uma situação ainda mais complexa. Será mais difícil superar e vencer o fascismo estatal e societal que se incrusta cumulativamente no Estado e na sociedade civil. Este se renovou, com as novas high-techs informacionais, mas a democracia paralisou-se nas vertentes do medo da violência que dele exala. E a sociedade hoje é mais adequada à proliferação do ódio entre os desiguais, pois é na capacidade de consumo suntuário que se estabelecem as diferenças e as identidades na dialética da dominação, não mais quase exclusivamente pelo pertencimento a classes visíveis na contenda política, que sempre que queriam poderiam sentar-se em lugares próprios para negociar.

As classes não são as mesmas e tanto as suas expressões de ódio como as utopias definharam. A saúde do planeta declina mais dos que as grises rosas que nasciam das chaminés industriais do passado e as mortes infinitas podem proliferar como num jogo “limpo” do videogame geopolítico com suas populações alienadas dando a sua colaboração negacionista para as suas próprias mutilações morais, em várias partes do mundo.  O fascismo de ontem não é o mesmo de hoje. Até porque o de hoje – por ser mais manipulatório e convincente nas entranhas do mercado – pode ser ilusoriamente mais fácil de vencer, o que é apenas um sonho do liberalismo político. Mas não é. Este artigo quer fazer uma reflexão sobre isso para os 50 dias do terceiro governo Lula.

No verão italiano de 1929, seriam comemorados os dez anos da fundação, por Benito Mussolini,  do “Fasci di Combattimento”. Era a vasta rede organizada que a partir de 1919, composta por desordeiros, ex-combatentes, marginais massacrados pela miséria, pequeno-burgueses desesperados com a crise do pós-guerra – desempregados de todas as ordens -,  tradicionalistas religiosos, todos dotados de uma santa fúria contra seu destino miserável, que formariam em 1921 os batalhões que se tornariam a malha dura do recém fundado Partido Nacional Fascista.

A emergência do Partido se batia contra a ineficiência da ordem liberal-burguesa malnascida através da violência, ele foi rasgando o que restava da sua coerência, desbastando as promessas vãs do liberalismo e suplantando as anunciações do novo mundo de igualdade que se originava das vozes à sua esquerda. As praças proletárias – sindicais, iluministas republicanas e socialistas – que não tiveram condições de travar o bom combate, não viram  a “revolução” que vinha do seu flanco direito: aturdidos pelas esperanças sufocadas pelo medo, cansadas da polidez preguiçosa das alianças liberais-democráticas, as massas optaram pela destruição da democracia representativa.

No segundo volume de Antonio Scurati (“O homem da providência”, 2022), o romancista-historiador segue de novo a figura histórica de Mussolini e esclarece os fundamentos da derrota da razão: “Depois da Grande Guerra, milhões de italianos pararam de esperar a mudança e começaram a se sentir ameaçados por ela. O canto das Praças se estrangulou em um grito. Um grito que não suplicava mais o futuro para enfim redimir o presente, mais intimava que o futuro permanecesse incriado. Não mais uma prece, mas um esconjuro.”

Em outubro 1927, escrevendo uma carta sobre a ocupação militar-colonial da Líbia, Mussolini revela a Luigi Federzoni – seu Ministro das Colônias – o espírito do movimento marginal à democracia, que passaria à apropriação total do Estado, de forma revolucionária: “eu digo que um camisa negra deve ser suficiente para manter o respeito da rarefeita população árabe da Líbia”. Ódio de classe, espírito colonial imperial e superioridade do “homo fascio” estão contidas na construção desta mensagem histórica.

Em 1999, no Programa “Câmara Aberta”, Jair Bolsonaro diz sobre o Golpe de 64: “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil, a começar pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso”, para dizer depois, em 2008 – no Clube Militar -, contra a Lei de Anistia: “o grande erro foi torturar, não matar.”  O império da vontade como barbárie é o centro da subjetividade revolucionária do fascismo e o seu objetivo é amarrar os seres humanos na sua essencialidade natural, na disputa pela sobrevivência com a força selvagem da autoridade total.

Embora em situações históricas diferentes, o surgimento de Mussolini e Bolsonaro no cenário da democracia liberal guarda identidades essenciais. O amplo leque de classes de ambos os movimentos políticos, a substituição do argumento pelo ódio irracional a um grupo ou grupos adversários, a ampla participação popular na emergência de ambas as lideranças, a irrelevância dos “afetos” políticos à democracia, tudo combinado com a opção deliberada das lideranças empresariais e de grande parte das classes populares e setores médios, vibrantes para conviver ou apoiar a barbárie. Tudo fecha o cerco material desta vontade magnífica e apocalíptica.

A criação  de uma nova identidade nacional específica, que transite da “identidade nacional-popular” – com base em classes sociais – (que negociam e podem se harmonizar) para a criação de uma “identidade mítica”, de coesão social com base em valores ancestrais ou tradicionais – que teriam existido remotamente numa sociedade próxima da perfeição -, seria o amálgama político da nova ordem de Bolsonaro, se ele conseguisse implementar seu assalto golpista.

O que lhe faltou, porém, não foi a vontade mítica, mas o apoio explícito das nossas Forças Armadas e a capacidade organizativa para o seu “Fasci de Combattimento”, de escassas convicções ideológicas e alimentado pelos subsídios estatais contra a fome. Mas no imaginário bolsonarista, inúmeras frases lapidares tiveram uma abrangência social e uma universalidade surpreendente, que ainda ressoam através de diversas formas verbais nos ouvidos do povo. Uma delas: “temos que retornar à época que as empregadas tomavam café da manhã conosco”.

Todas as suas fórmulas buscavam fazer a vida mais simples e mais cordata. Desde que cada um aceitasse o seu lugar na sociedade e condicionasse a sua ambição de ”subir na vida”, a qualquer custo, ao espaço permitido pelo Líder e assim permanecesse ilhado nos círculos restritos das suas corporações. Desde que as mulheres “aceitassem o seu papel”, os negros se conformassem com a sua subalternidade, os povos originários aceitassem passivamente a sua extinção e os homens se tornassem, seletivamente, “imbrocháveis”. E cada vez mais armados para “protegerem” as suas famílias do comunismo e da dissolução dos costumes que as tornaram pessoas “de bem”. A subjetividade fascista é um arquétipo construído conscientemente para ordenar as relações de dominação que vem da “natureza das coisas”.

Outras atitudes para a construção de “valores” da política bolsonarista, tais como o prestigio a grupos de execução sumária “de bandidos” (licença para matar de forma indiscriminada); direito das pessoas se armarem para se defenderem (só as “pessoas de bem” para se auto protegerem); a oposição à liberação do uso de drogas leves (combinada com a liberação, na prática, das drogas pesadas nas altas esferas sociais); e a crítica aos custos pesados e à burocracia excessiva, para a contratação do trabalho assalariado (especialmente para pequenas empresas de serviços e da produção industrial tradicional), ainda estão no imaginário popular, alimentando as fantasias justiceiras do fascismo. É sobre isso que devemos à curto prazo compor uma estratégia

A ausência de uma proposta arrojada de proteção social e de proteção laboral do novo mundo do trabalho, já majoritário, será sempre uma falta visível no início de qualquer governo democrático e ela somar-se-á  a outras das questões-chaves que um governo como o de Lula deverá tratar o mais breve possível: um imposto de renda fortemente progressivo, uma proteção estrutural, fiscal e financeira aos pequenos negócios de serviços e comércio, espaço econômico não monopolista onde se formam os grupos de pensamento autoritário para combater a criminalidade que lhes assola, os impostos e taxas que lhes sufocam, objetivamente subsidiando o império dos bancos e os monopólios.

A formação de gestores experientes, inovadores e criativos, que irão operar no curto espaço de liberdade permitido à gestão financeira do Estado, nos países “de fora” do centro orgânico do sistema do capital, devem ser impulsionadas rapidamente. Os métodos tradicionais do pensamento social-democrata, baseados no ritualismo presencial – quando não integrado nos sistemas virtuais de informação, comunicação, controle e participação política – fundada nas novas tecnologias informacionais, logo serão irrelevantes. Estamos na crise política mais grave do sistema-mundo, que aliás o brilho da nossa política externa está se dando conta rapidamente.

É o período histórico de mais pragmatismo, amoralidade e perversidade nas políticas globais dos países capitalistas ricos, no qual os valores tradicionais da democracia política e do republicanismo tornam-se meros instrumentos para a formação de alianças militares com vistas às próximas batalhas geopolíticas. Na contramão desta batalha estratégica entre os países mais ricos, todavia, é que um país como o Brasil, com suas imensas riquezas naturais – avesso às guerras de conquista e ao exercício imperial –, pode ser a grande novidade democrática desta primeira  metade de século, para emprestar dignidade à vida do seu povo e ajudar a  derrotar o ora demônio revivido do fascismo em escala universal. O Brasil será do mundo à medida que for da América e de si mesmo, com seu povo sofrido redimido.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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