Opinião
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27 de fevereiro de 2023
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10:15

Em defesa da irresponsabilidade fiscal, parte III (por Marcelo Milan)

Haddad disse não acreditar que o fim dos incentivos provoque uma onda de demissões. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Haddad disse não acreditar que o fim dos incentivos provoque uma onda de demissões. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

Nesta terceira e última parte, algumas experiências históricas de finanças públicas são retomadas para ilustrar a impossibilidade de responsabilidade fiscal, entendida como superávits orçamentários nominais prolongados, como regra em uma economia capitalista. E também o que esperar em termos fiscais do novo Ministro da Fazenda da Bananilga dentro destes marcos. A Suécia é um bom ponto de partida para o primeiro ponto. Segundo dados da OCDE, o país tem uma carga tributária de 49,5% do PIB. E mesmo assim não consegue evitar déficits. Entre 1995 e 2021, houve 13 anos com déficits, e em sequência de 2009 a 2014 (crise europeia), além de déficits cavalares para lidar com crises bancárias no início dos anos 1990. Novamente, as contas públicas DEVEM ser desequilibradas para salvar as empresas capitalistas. Se não todas, a maior parte. A Dinamarca, com uma carga tributária de 54,4% do PIB, também teve 13 anos com déficits no mesmo intervalo. O próprio Tratado de Maastrich, que levou à criação do Euro, tentou estabelecer limites para os déficits em 3%, não exigindo portanto responsabilidade fiscal. E os irresponsáveis alemães não cumpriam a regra fiscal… De 1995 a 2021, a Alemanha, com a arrecadação alcançando 47,5% do PIB, tiveram 18 anos com déficits. Olhando para um período mais longo, de 1978 a 2021, a França (arrecadação de 52,5% do PIB) não teve um mísero ano sem déficit. Mais de quatro décadas de irresponsabilidade fiscal… E os yankees, de 1970 a 2021, tiveram superávit em apenas um ano.

Já os comunistas chineses, espertos, não fazem parte da OCDE. Dados da empresa CEIC mostram que, entre 1996 e 2022, a China (carga tributária estimada de pouco acima de 12%) teve em geral déficits nominais, exceto em alguns momentos na segunda metade dos anos 2000. Há poucas exceções nacionais aos déficits como norma, geralmente de países exportadores de petróleo ou com alguma outra peculiaridade, como a Noruega (mas a carga tributária chega a quase 60% do PIB). Em suma, falta história aos fiscalistas. Historicamente, prevalecem os déficits no capitalismo, com ou sem ‘regras’ fiscais para contê-los. Ou seja, prevalece uma tendência ao aumento da dívida, mas não necessariamente da famigerada relação dívida/PIB (nota aos incautos: em economia, para deixar qualquer coisa menor, basta dividir pelo PIB…). O caso norte-americano é ilustrativo, com a expressão “penhasco” ou “abismo” fiscal quando o teto da dívida é imposto e paralisa o governo. Este país precisa elevar o teto da dívida (não do gasto) com elevada frequência, pois é uma ilusão querer limitar o endividamento de um Estado em estado permanente de guerra para manter suas condições mundiais de acumulação e no qual os ricos não são devidamente tributados. E não só nos EUA. Naquele país, Reagan, por exemplo, manteve a tradição republicana de não se curvar à responsabilidade fiscal (que deixaria os EUA em uma situação militarmente frágil). Investiu no programa Guerra nas Estrelas, mesmo cortando gastos sociais, e cortou impostos dos ricos e poderosos. E, como sempre, os financistas não deram um pio.

Por essas e outras razões, o economista yankee Robert Eisner escreveu dois importantes livros: “Quão real é o déficit?”, de 1986, e “O grande temor fiscal”, de 1997. Paul Krugman cunhou uma expressão para descrever os defensores da responsabilidade fiscal: Vigilantes dos bônus do Tesouro. Existe até uma expressão para mostrar a irrelevância dos déficits para a solvência do governo: como eu deixei de me preocupar com o déficit público (ou a dívida) e passei a gostar dele. Outro economista Keynesiano, o britânico Wynne Godley, utilizou relações contábeis simples, conhecidas como balanços setoriais, para mostrar os encadeamentos entre os fluxos e os estoques públicos, privados e externos. Na realidade existe uma virtual impossibilidade de que todos os resultados estejam equilibrados ao mesmo tempo durante todo o tempo. Se o setor público pudesse igualar suas receitas e despesas durante uma crise, a consequência mais provável seria um desequilíbrio no setor privado ou nas contas externas, como na Grande Depressão do século XX. Se há o virtuosismo dos superávits e da parcimônia em alguma parte do sistema, deve haver a irresponsabilidade dos déficits em outra. Questão meramente contábil.

E na Bananilga? Fernando Ferreiro representa uma mudança política de 180º comparado ao liberal Chicago “Boi” Guedes. Mas defenestrar a responsabilidade fiscal não parece estar no horizonte do ponto de vista discursivo. Se os picaretas das instituições financeiras não possuíssem o poder desproporcional de destruir riqueza e renda e enfraquecer as medidas econômicas que favorecem a base da pirâmide social, mais do que sua capacidade de contribuir para o financiamento da construção de qualquer coisa positiva, o novo ministro poderia simplesmente lançar um ‘dane-se’ à Faria Lima. Como argumentado na primeira parte desta trilogia, a questão da responsabilidade fiscal esconde uma questão moral e de classe, querendo transferi-las mecanicamente para uma relação contábil e para os instrumentos operacionais que a concretizam, favorecendo interesses financeiros. Por outro lado, fazer concessões às chantagens fiscalistas desta molecada (em sentido conotativo e denotativo) implica a morte do governo para fins populares. É ferrar com a população, fazendo valer o nome. Medidas já foram tomadas para diminuir o déficit projetado e agradar a Faria Lima (fim da desoneração dos combustíveis, litígio zero no CARF para as disputas tributárias da burguesia, uso de ativos não reivindicados do PIS-PASEP, aproveitamento de créditos do ICMS e reoneração dos combustíveis e do PIS-COFINS sobre a financeirização das grandes empresas).

O desafio de Fernando Ferreiro é muito difícil de ser superado. Tem o compromisso de propor uma nova âncora (que só afunda), regime, regra, arcabouço ou qualquer outro termo anódino similar em lugar do estúpido teto de gastos para satisfazer as finanças privadas. As discussões iniciais parecem apontar para uma mudança apenas nos impostos indiretos, sobre consumo. E tendo como pano de fundo a espinhosa questão do (im)pacto federativo, ou seja, manter alguma centralização e concentração e redistribuir de acordo com as frações regionais do capital e sua capacidade de mobilizar recursos e realizar seu valor pelas respectivas demandas. Os principais centros capitalistas não querem perder (ou assumir tributos líquidos positivos). Basta notar a reação com a proposta de eliminar as desonerações do PIS-COFINS para ver o chororô da burguesia. Se for de fato esta a proposta, a ausência de questões sobre a tributação da renda e do patrimônio, mesmo com o aumento da faixa de isenção no caso do IRPF, perfeitamente colocadas pelo professor Róber Ávila, sugere um certo desespero para agradar a Faria Lima. Não se trata de perder os anéis para não perder os dedos…já não tem nem uma mão inteira ou um braço, mas meio corpo sendo concedido.

Do ponto de vista da despesa, Ferreiro apresenta uma distração. Afirma que vai tirar a granada do bolso dos servidores federais. O ministro é um homem inteligente. Não tem comparação com Chicago “Boi” Granadeiro Guedes que, como todo bom agente a serviço do golpe, agora encontra refúgio no governo paulista. Portanto, Ferreiro sabe que a granada não é uma bomba de efeito retardado, mas um dispositivo de rápida explosão, uma vez removido o pino. Ou seja, a granada já explodiu faz tempo, ajudando na redistribuição de recursos fiscais pelo governo fascista para comprar votos e lubrificar o fundamentalismo. Ou seja, a granada não está mais lá. E com ela se foram o bolso, o cinto, a calça e a cueca (o arrocho está tão grave que estão trocando as excepcionais cuecas Hermès pelas coleções da Derek Rose Otis). Quem sabe parte da derrière? De qualquer forma, qualquer problema cíclico que surgir, mesmo que não esteja diretamente relacionado à questão fiscal, será atribuído pelos liberais à questão fiscal. Qual a relação de causa e efeito? Não sabem. Mas isto não importa. É um caso de desonestidade intelectual.

E se não for para beneficiar a Faria Lima, como conduzir a política fiscal? Alguns economistas fiscalistas pseudo-progressistas defendem que a fração industrial da burguesia deve receber tratamento fiscal privilegiado, contribuindo pouco com T e recebendo uma boa dose de G. O ‘déficit’ fiscal setorial para esta política é inevitável e assim planejado, mas considerado desejável por supostos efeitos sobre produtividade, progresso técnico e empregos de boa qualidade (desconhecem as fábricas enxutas, sem funcionários, e a quarta revolução industrial baseada na inteligência artificial). Chamam isso de políticas industriais e de inovações ou reindustrialização. E para manter a responsabilidade, algum outro grupo ou classe contribuirá muito com T e receberá pouco G. Geralmente a população pobre, pois a banca consegue boicotar qualquer medida que a force a pagar impostos de fato, isto é, não simbólicos. Os ‘industrialistas alquimistas’ tentam racionalizar as transferências para a burguesia industrial com base em Max Weber e sua burocracia perfeita e republicana, mas acabam reproduzindo interesses bem específicos (e conhecidos).

A responsabilidade fiscal aqui serve para manter a enorme concentração de renda. São portanto arautos do capital industrial, disfarçando o discurso com apelos à produtividade, crescimento e desenvolvimento. Sobre a produtividade, basta ver o que acontece nos EUA desde os anos 1970. A produtividade cresceu de forma substancial, mas a compensação (remuneração e benefícios) dos trabalhadores praticamente estagnou. Ou seja, a produtividade pode aumentar, mas isso não significa que a maioria estará melhor economicamente. Para onde vão estes ganhos então? Para as diferentes frações do capital. Hoje, na Bananilga, se houvesse ganhos de produtividade do trabalho, eles não iriam para os trabalhadores. O que os desenvolvimentistas defendem? Um redirecionamento dos ganhos potenciais de produtividade do trabalho para o capital industrial e algumas migalhas para os trabalhadores, quando muito. O problema é achar onde está a produtividade. Os economistas pró-capital inventam a desculpa que a produtividade não cresce porque o governo é ineficiente, fiscalmente irresponsável e desloca o investimento privado. Tá bom.

Na verdade, os subsídios e incentivos para a burguesia industrial são catalisadores do mercado imobiliário em Miami. Neste caso, a produtividade, se existisse, geraria acumulação na construção civil daquele local. Trata-se de desperdício? Não. As imobiliárias e a construção civil de Miami ganham bastante (e também o tesouro municipal, que recebe recursos que se tornam indisponíveis na Bananilga – reforçando, na retórica, o discurso da necessidade de cortes nas despesas para não gerar irresponsabilidade fiscal…). Não é como rasgar dinheiro, pois isso não importa. O papel da impressão na casa da moeda já foi adquirido e utilizado, e a cadeia da celulose ativada. Desperdício no capitalismo significa inviabilizar trabalho produtivo. Mas e as pirâmides e catedrais? Desperdício? Ou disfuncionalidade da despesa? Novamente, os críticos moralistas ignoram o motivo religioso ou o poder de direcionamento do trabalho social de papas, cardeais e faraós. A religião mobilizava trabalho da base social para os faraós, sacerdotes e marajás. Hoje há templos para pastores picaretas. Quem tem o poder de fato determina os fins do trabalho social. Este trabalho poderia ser direcionado para outros fins? Claro. Em uma sociedade melhor. Não nesta. Ou pirâmides e catedrais não devem ser construídas, mas mansões com latrinas de ouro sim? Quem quer religião sem construção civil incrementada, vá para os terreiros de umbanda. O resto é idealismo pequeno-burguês. Uma ladainha moralizante, tanto quanto seu oposto. Como mostrou Keynes, a alternativa é a ociosidade do trabalho, produzindo menos do que seria possível (não desejável, pois o desejo da maioria pouco importa neste sistema). Os políticos que decidem o direcionamento do trabalho social podem ser moralmente irresponsáveis. Muitos são de fato. Mas isso não torna os capitalistas, por exclusão, moralmente responsáveis. Uma boa parte da câmara federal dos deputados é formada por burgueses que financiam as próprias campanhas, a propósito.

Em resumo, espero que esteja claro, a esta altura, que a responsabilidade fiscal nada mais é que uma forma de manutenção de relações assimétricas de poder, não um princípio geral de administração das finanças públicas. As despesas e a arrecadação do governo refletem relações de poder que as direcionam para determinados fins. A dinâmica da acumulação e da busca por lucro, na medida em que se projeta para a política, gera déficits recorrentes. Nenhuma economia capitalista jamais entrou em colapso pela existência de déficits recorrentes, mas estes foram muitas vezes fundamentais para evitar o colapso da economia privada. Portanto, é irresponsável acreditar que os déficits e a dívida pública sejam mera vontade política de parlamentares, juízes, burocratas e políticos do poder executivo. Elas são reflexo de uma sociedade desigual, e enquanto a desigualdade persistir, haverá déficits e dívida. Isso não deriva de uma questão moral. É mero resultado contábil das relações de poder que perpassam o estado nacional e as classes sociais.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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