Opinião
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28 de fevereiro de 2023
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10:06

Depois do sol (Coluna da APPOA)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Gerson Smiech Pinho (*)

O que é um pai? Apesar de ser uma pergunta aparentemente banal, sua resposta é difícil de formular com precisão. Afinal de contas, os traços que delimitam a figura de um pai podem se mover em sentidos tão distintos que sua demarcação recusa um contorno definitivo. Diversas nuances e sutilezas podem se associar à questão, dependendo de quem se disponha a decifrá-la. Isto porque a definição do que consiste “ser pai” deriva da experiência singular de cada um, dos laços que estabeleceu em sua vida e daquilo que lhe foi transmitido pelas gerações anteriores.

Perguntas como esta que permanecem abertas, sempre com um resto ainda por dizer, seguidamente encontram na arte um modo potente de expressão. Costumam servir de matéria-prima para a produção de obras em diferentes âmbitos da criação. Um belo exemplo disso é a forma como Aftersun, primeiro longa da cineasta escocesa Charlotte Wells, tem sido capaz de acercar-se do tema da paternidade ao retratar o laço que une um pai e uma filha, que passam as férias juntos, mas residem em cidades distantes.

Lançado recentemente no Brasil, Aftersun acompanha Calum, um jovem pai, na companhia de sua filha de 11 anos, Sophie, em uma viagem à Turquia durante os anos de 1990. Embalados pelas deslumbrantes imagens de um distante verão, pai e filha desfrutam seus dias ao sol, passeando ou contemplando o céu à beira da piscina.

À primeira vista, o filme apresenta um ritmo suave e brando. Porém, na medida em que avança, mostra-se denso e inquietante. Na intimidade das cenas, sob o arrebatamento proporcionado pela ociosidade das férias, irrompem afetos experimentados pela dupla que são gradualmente revelados ao espectador. A beleza das paisagens se mescla à delicadeza da trama, da qual destaco impressões que podem muito bem ser condensadas nos dois vocábulos que compõem o título do filme: after (depois) e sun (sol).

É em uma época posterior, muito tempo depois de ocorridos os eventos relatados no filme, que a narrativa se situa. É desde o olhar de uma adulta que também se tornou mãe, que Sophie retoma porções do passado ao lado do pai, revisita aquilo que lhe marcou e lhe foi transmitido no convívio com ele. Nesse contexto, a câmera portátil da menina, que registra uma série de cenas da dupla de protagonistas, é um elemento bastante simbólico e representativo daquilo que permanece em sua memória. Ao recordar aquele verão já um tanto distante, suas lembranças ganham novos sentidos, tonalidades diferentes de quando era criança. As situações de intensa alegria que alternam com outras, repletas de melancolia, evidenciam não somente o laço afetivo, mas também os momentos de fragilidade e de desamparo vividos pelo pai.

Em um dos tantos diálogos tocantes do filme, Sophie diz ao pai que, quando estão longe, gosta de pensar que compartilham o mesmo sol. Ao olhar para o céu, sente que ainda que não estejam juntos no mesmo lugar, ambos podem ver o sol e que, por esta razão, estão unidos de certa forma. Perante o infinito do céu, há um ponto que os conecta e que permite fazer frente ao desamparo – ponto de enlace para além da presença física e material. Ao longo da narrativa, o filme mescla continuamente o vínculo amoroso entre pai e filha com as situações de desencontro e desamparo experimentadas por ambos.

O desamparo é um estado de insuficiência originária que está na base da experiência de todo e qualquer ser humano. Diante dos estímulos que lhe chegam, um bebê está em uma condição de total impotência, o que torna necessário que outro humano intervenha para apaziguar seu mal-estar. É nesse domínio que se inaugura a fundamental presença de um outro capaz de proteger e amparar a criança. Função costumeiramente exercida por mães e pais, mas não necessariamente por eles, a qual consiste em receber o pequeno ser num mundo que o precede, permitir que sobreviva e seja acolhido na cultura que o cerca.

Sem qualquer pretensão de oferecer resposta à questão colocada no início, Aftersun põe em relevo traços elementares presentes na experiência da paternidade. Desde certa perspectiva, evidencia os efeitos do registro da memória, daquilo que se transmite entre as gerações. Além disso, destaca a importância da necessária presença de um outro, referência fundamental frente ao abismo de um horizonte sem fim, que possibilita delimitar uma borda para fazer frente ao desamparo – um mesmo ponto luminoso no céu para compartilhar, que permite estar junto e se enlaçar.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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