Opinião
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21 de fevereiro de 2023
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12:07

A independência dos Bancos Centrais: dilemas e miragens (por André Moreira Cunha e Luiza Peruffo)

Governo estadual calcula perda de R$ 811 milhões de ICMS em relação a 2022.  Foto: Arquivo/Agência Brasil
Governo estadual calcula perda de R$ 811 milhões de ICMS em relação a 2022. Foto: Arquivo/Agência Brasil

André Moreira Cunha e Luiza Peruffo (*)

Charles Goodhart, um notório especialista em bancos centrais (BCs), demonstrou que estas instituições são criaturas mutantes. Muitos deles, como os influentes Banco da Inglaterra e a Reserva Federal dos Estados Unidos, nasceram sob forte influência do setor privado. Outros, se estruturaram sob o manto do poder centralizador dos Estados Nacionais. A ideia de que a gestão da moeda é estritamente técnica, isolada dos interesses privados ou das pressões políticas é uma ilusão perigosa. O que difere a natureza institucional dos BCs, tanto hoje, quanto ao longo do tempo, é o peso com que cada um destes lados influencia o pêndulo das decisões, bem como a forma de cada sociedade lidar com elas.

Logo após a eclosão da crise financeira global (2007-2009), Goodhart fez um balanço desta evolução e identificou três grandes ciclos de estruturação dos bancos centrais. A era Vitoriana (1840 – 1914) foi um período em que, nos marcos do padrão ouro, o grande dilema era limitar a expansão dos meios de pagamento para além de determinados limites associados à existência de reservas metálicas, por um lado; e a necessidade de estabilizar o sistema financeiro que se expandia, por outro. Entre os anos 1930 e 1960, no período de “controle governamental”, os BCs estiveram subordinados institucionalmente e politicamente aos objetivos dos governos centrais em garantir o pleno emprego. O terceiro ciclo coincide com a era do “triunfo dos mercados” (1980 – 2007), período em que os gestores dos BCs se tornaram independentes da política e passaram a se orientar por critérios supostamente técnicos de controle da inflação por meio da gestão das expectativas do setor privado, usualmente pela adoção formal ou informal do sistema de metas de inflação (SMI). Desde os anos 1980, a independência dos BCs se tornou um dogma inquestionável, pelo menos até o momento em que os seus excessos produziram a maior crise financeira desde 1929.

Para Goodhart, a crise financeira global foi a antessala de um novo momento em que a independência dos BCs seria relativizada. Até porque os excessos do período de “triunfo dos mercados” trouxeram custos sociais elevados, a serem pagos pelo conjunto da sociedade. Para ele: “Agora há uma boa chance – mas não uma certeza – de que estejamos entrando em uma quarta época … com regulamentação mais intrusiva, maior envolvimento do governo e menos dependência de mecanismos de mercado… A ideia do banco central como uma instituição independente será posta de lado.”

A independência dos BCs não evitou a combinação tóxica entre forte expansão na liquidez e desregulamentação financeira orientada pelos interesses do setor privado. Sua resultante foi a emergência de ciclos financeiros mais longos e intensos, bem como a multiplicação de crises. Como destacou a The Economist, com a crise financeira global questionou-se, ainda mais, se a política monetária teria sido capturada pelos interesses das elites. Estas foram protegidas pela generosidade da “expansão quantitativa” nos seus balanços depois de 2009, restando ao conjunto da sociedade conviver com a instabilidade macroeconômica e a desigualdade na distribuição da renda e da riqueza.

Em fevereiro de 2021, o Congresso aprovou e o presidente da República sancionou a Lei Complementar nº 179 que, dentre outras coisas, estabelece que: (i) o objetivo fundamental do Banco Central do Brasil (BCB) é o de “… assegurar a estabilidade de preços”, podendo atuar secundariamente para “… zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”; (ii) os mandatos do Presidente do BCB e demais diretores serão de quatro anos, prorrogáveis por igual período, com indicação do chefe do Executivo e aprovação do Senado; (iii) o mandato do presidente do BCB se inicia no dia primeiro de janeiro do terceiro ano de cada novo mandato da Presidência da República, o que implica a não coincidência entre ambos; (iv) o BCB não está subordinado a nenhum ministério; e (v) presidente e diretores do BCB podem ser exonerados a pedido, por razões de doença, por condenações penais transitadas em julgado ou por meio de órgão colegiado, e por incompetência.

A assim-chamada “independência” do BCB se associa ao fato de que o presidente da República perdeu o poder de afastar o chefe e os demais diretores daquela autarquia ex officio, especialmente quando da assunção de um novo mandato. Esta “independência”, contudo, não evita pressões políticas ou de mercado, sendo, portanto, um conceito relativo.

Desde que foi criado, em 1964, o BCB teve 27 presidentes titulares e quatro interinos, contando com o atual: Roberto Campos Neto. Em média, cada presidente ocupou o cargo por cerca de dois anos. A instabilidade monetária e as sucessivas crises financeiras observadas nos anos 1980 e 1990 criaram um ambiente de intenso rodízio no comando da autoridade monetária: foram 20 presidentes entre 1980 e 1999, quase um por ano. A partir da introdução do Sistema de Metas de Inflação (SMI), em junho de 1999, durante o mandato de Armínio Fraga, a gestão do BCB tornou-se mais alinhada à normalidade internacional em termos da estabilidade na posição dos seus dirigentes. Estes foram indicados no início de cada novo mandato presidencial e acompanharam os respectivos chefes do Executivo até o término dos mesmos.

As gestões Armínio Fraga (1999-2003), Henrique Meirelles (2003-2011), Alexandre Tombini (2011-2016) e Ilan Goldfajn (2016-2019) puderam definir os seus instrumentos e as suas políticas em atenção ao desiderato de estabilizar preços nos marcos do Sistema de Metas de Inflação (SMI). Ainda assim, não foram poucas as vezes em que críticas surgiram por parte de analistas, políticos e acadêmicos acerca de supostos alinhamentos políticos entre os gestores da política monetária e o poder incumbente ou os atores de mercado.

Campos Neto (2019-atual) foi indicado pelo presidente Bolsonaro e entronizado como o primeiro dirigente máximo do BCB a exercer seu mandato sob o amparo do que reza a Lei Complementar nº 179. Os atritos desta novidade institucional logo se puseram em marcha. Dirigentes e políticos do partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem como o próprio, passaram a criticar de forma explícita a manutenção da meta da taxa básica de juros (SELIC) em 13,75% a.a. Com uma inflação acumulada de pouco menos de 6% a.a. (em janeiro de 2023) e níveis esperados entre 5,8% a.a. (2023) e 4,0% a.a. (2024), estabelece-se uma taxa real ex-ante ou ex-post de 8% a.a. Trata-se de um portento em um mundo que ainda convive com taxas de curto prazo, ajustadas pela inflação, negativas ou próximas de zero.

A elevação da Selic nos últimos dois anos – que passou de 2,0% para os níveis atuais – ajudou a conter a aceleração inflacionária. Todavia, tal aperto, mais intenso e contundente do que o observado em outros países, já não encontra justificativas inquestionáveis. Há cada vez mais vozes argumentando que é hora de reverter tal política, dados os seus impactos negativos sobre a economia real. Nas palavras de um ex-diretor do BCB: “Com o atual governo cumprindo o seu papel e conseguindo confiança fiscal, assim como aumento na entrada de dólares, há espaço para a Selic cair em breve. O enfraquecimento da economia e a dificuldade que a população está passando com a inadimplência revelam que, além da possibilidade, há uma forte necessidade dessa queda. O Banco Central pode e deve focar apenas em começar a cortar os juros….”. Para este mesmo influente analista, o Copom deveria ser mais cuidadoso em forma de registrar a avaliação da política fiscal, ao passo que o Executivo contribuiria muito com o BCB se fosse mais discreto em suas críticas à política monetária.

André Lara Resende e economistas que subscreveram um manifesto pela queda na taxa de juros defendem uma reorientação da política monetária em um sentido conceitual e operacional. Em artigo no Valor, Resende argumenta que o BCB e os analistas de mercado apoiam o viés altista da Selic sob o argumento da existência de um pretenso risco fiscal, a despeito da realidade apontar no sentido contrário. O manifesto registra que: “A taxa de juros no Brasil tem sido mantida exageradamente elevada pelo Banco Central e está hoje em níveis inaceitáveis. O discurso oficial em sua defesa não encontra nenhuma justificativa seja no cenário internacional ou na teoria econômica e o debate precisa ser arejado pela experiência internacional”.

Para além dos aspectos conjunturais, pairam no ar a polêmica em torno da eventual elevação da meta da inflação e a proximidade política de Campos Neto com o ex-presidente Bolsonaro e seus aliados próximos. Tais aspectos não são menos importantes no enredo em tela e remetem a um elemento arraigado na cultura política nacional: a ausência de fronteiras claras entre interesses particulares e públicos, bem como a falta de limites – impostos pela lei ou pela “autocontenção” – para que os atores políticos influenciem as áreas supostamente técnicas e responsáveis pela manutenção de bens e serviços tipicamente públicos, como a estabilidade monetária.

Em entrevista ao programa Roda Viva, Campos Neto admitiu confraternizar com o núcleo duro do governo Bolsonaro, além de participar de grupos de WhatsApp daquele. Todavia, argumentou que isto não impediu que sua postura tenha sido estritamente técnica e voltada ao interesse público. Disse ele: “Precisa diferenciar proximidade com algumas pessoas de independência de atuação. Em termos de atuação, foi a maior subida de juros em um ano eleitoral na história do Brasil”.

A legislação não impede que qualquer cidadão, mesmo aqueles investidos de poderes capazes de afetar a vida do conjunto da sociedade, tenham “proximidade com algumas pessoas”, quaisquer que sejam elas. Ainda assim, haveria de se refletir profundamente em torno da minimização do problema conhecido como revolving door (“porta giratória”, em tradução literal), que se refere a uma tendência de pessoas que ocupam altos cargos públicos (como diretores e presidentes do Banco Central) posteriormente se beneficiarem com carreiras lucrativas no setor privado justamente por terem tido acesso ao poder decisório de alta relevância e complexidade. Ou, ainda, que venham do setor privado para o público realizar políticas mais alinhadas aos interesses daquele do que ao bem comum.

Em 2022, o European Ombudsman produziu um relatório detalhado sobre os casos mais notórios de revolving door no Banco Central Europeu (BCE), inclusive para funcionários de escalões médios da instituição, mas que se tornaram portadores de conhecimentos especializados altamente estratégicos. O relatório recomenda aumentar o tempo de “quarentena” dos atuais seis meses, prática já existente no Brasil, para um ano, dentre várias outras medidas voltadas ao constrangimento desta captura por parte do setor privado de técnicos e executivos de alto escalão. Larry D. Wall, do FED em Atlanta, oferece uma perspectiva convergente.

A OCDE tem se preocupado com o tema. Há evidências de que a presença de executivos do mercado financeiro no exercício de funções públicas amplia a probabilidade da introdução de medidas de desregulamentação. Já funcionários públicos de alto escalão tendem a obter remunerações proporcionalmente mais elevadas em posições no setor privado exatamente por terem exercido suas funções de relevo. Tais fenômenos podem minar a confiança da sociedade nas instituições públicas. Esta preocupação esteve no centro das reflexões do czar da desinflação dos EUA, Paul Volcker, em sua biografia Keeping At It: The Quest for Sound Money and Good Government, de 2018. Volcker relata sua perplexidade ao constatar que, após décadas afastado dos circuitos do poder em Washington, deparou-se com uma nova realidade onde o dinheiro dos lobbies passaram a ter uma influência desproporcional sobre as decisões políticas associadas aos temas monetários e financeiros.

A tensão provocada a partir das críticas do presidente Lula ao BCB podem ser encaradas como positivas, na medida em que se abre espaço para renovar a discussão sobre pontos essenciais para o fortalecimento da economia e das instituições. O BCB tem a missão de zelar pela estabilidade monetária, algo que perpassa aspectos técnicos e políticos. Seus gestores têm o dever de dar transparência e consistência em suas decisões. Como é amplamente debatido na academia internacional, a política monetária é realizada em uma zona cinza entre a “arte” e a “ciência”. Ao não oferecer evidências e justificativas robustas para a manutenção da taxa básica de juros em níveis tão elevados, ou por associá-la a um risco fiscal questionável, em linha com argumentos de parte importante do mercado financeiro, o BCB oferece a oportunidade para que se questione se há um equilíbrio adequado entre as dimensões técnica e política de sua atuação.

Em um sentido ainda mais amplo, ao não se equacionar adequadamente questões como o revolving door, mantem-se escancarada a porta dos questionamentos sobre a neutralidade do BCB diante dos interesses rentistas. Já a existência de afinidades ou proximidades entre os dirigentes do BCB e políticos, independentemente das suas orientações, representa um elemento que pode ser utilizado para enfraquecer a capacidade desta importante instituição exercer suas funções. Neste momento, a mira está em Campos Neto. No futuro, poderá ser redirecionada para quem for indicado pelo presidente Lula para sucedê-lo.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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