Opinião
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3 de janeiro de 2023
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07:47

A disputa pela política fiscal (por Flavio Fligenspan)

Haddad disse não acreditar que o fim dos incentivos provoque uma onda de demissões. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Haddad disse não acreditar que o fim dos incentivos provoque uma onda de demissões. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

A questão fiscal ocupou boa parte do debate público no período de dois meses entre o resultado eleitoral e a posse do Governo Lula 3, inclusive com a dura negociação de uma PEC para ajustar o gasto público extra teto no delicado ano de 2023. Neste primeiro ano do novo governo muitos detalhes das contas públicas devem ser reorganizados, uma nova regra fiscal (âncora) deve ser elaborada e espera-se a conclusão de um longo processo legislativo que nos proporcione uma reforma tributária.

Governos petistas se caracterizam por acreditar que o Estado tem um papel importante na economia, seja para apontar caminhos para o desenvolvimento, seja para direcionar recursos públicos que apoiem políticas, algo bem diferente de governos de orientação liberal, que acreditam que os mercados cumprem melhor a tarefa de indicar as melhores oportunidades. Na versão liberal mais pura, o gasto público deve ser o mais contido possível, porque em geral erra na orientação – até, mas não somente, por contaminação política – e é por natureza menos eficiente que o gasto privado.

O sistema financeiro, um dos braços mais representativos da visão liberal no Brasil, tem se colocado criticamente sobre as primeiras posições do Governo Lula 3, especialmente nos temas fiscais, e mais diretamente no que se refere aos gastos públicos. O argumento central é que os gastos pressionam a inflação e minam a confiança dos financiadores na boa administração da dívida pública, correndo-se o risco de extrapolar um parâmetro basilar da economia, a relação dívida/PIB. É curioso que a resposta imediata dos representantes do sistema financeiro quando perguntados sobre as consequências de um aumento do gasto público é sempre a mesma: um aumento da inflação. A racionalidade desta resposta, em geral automática, é que o gasto é um item da demanda agregada e, como tal, pressiona os preços. O pressuposto, sem o que a racionalidade fica prejudicada, é que estamos trabalhando no limite da capacidade de produção desta economia, logo, qualquer aumento de demanda transformar-se-ia naturalmente em inflação.

Me parece que o problema da resposta automática do sistema financeiro está no pressuposto, nem sempre revelado, mas dado como implícito. A pergunta é: estaríamos mesmo diante de uma situação de produção no limite da capacidade, a ponto de qualquer incentivo adicional causar inflação? Esta resposta é importante, porque ela é que sustenta a visão tradicional e embasa boa parte das críticas severas ao gasto público neste momento. Observe que na hipótese contrária, de estarmos produzindo aquém da capacidade, o gasto público, além de sua função social, representaria o estímulo que o setor privado não está oferecendo para uma saudável retomada da atividade. Aliás, há praticamente unanimidade entre economistas de que já estamos vivendo uma desaceleração que se estenderá por 2023.

Vamos aos números. O PIB, indicador mais sintético do funcionamento da economia, nos mostra que no terceiro trimestre de 2022 – a informação mais recente – já recuperamos plenamente os efeitos negativos da pandemia; produzimos hoje 4,5% mais do que no final de 2019, antes da Covid. Mas, se recuarmos um pouco no tempo, a resposta muda, pois produzimos hoje apenas 1,4% mais que no início de 2014, antes da recessão de 2015/2016. Ou seja, quase nove anos depois do início de 2014, nosso PIB é levemente superior. Claro, há que se balancear esta resposta. Neste período com duas recessões houve queima de capital, portanto queda de capacidade produtiva, mas registraram-se também novos investimentos e ganhos (pequenos) de produtividade. Estaríamos hoje realmente forçando nossa estrutura produtiva?

Outra variável que ajuda a examinar o ritmo da produção é a Utilização da capacidade instalada (UCI). Trata-se de uma variável de diferente natureza do PIB, que mede o percentual da capacidade total de produção da indústria de transformação que está sendo utilizada, ou seja, se estamos usando intensamente ou não nosso potencial de produção, podendo indicar uma situação de aquecimento da atividade ou de um nível baixo da produção. Apesar de medirem fenômenos diferentes, a UCI está com comportamento semelhante ao do PIB neste momento, cerca de 5% superior à medida de pré pandemia e 3% abaixo do início de 2014. Ocorre que em novembro – última informação disponível – a UCI era de 79,8% (com ajuste sazonal), um percentual considerado moderado, nada que lembre um sobreaquecimento ou que ameace o sistema de preços.

Um outro conjunto de variáveis, que fecha o quadro usual da verificação conjuntural da economia, é o que mostra a situação do mercado de trabalho. É verdade que se geraram muitos empregos em 2022, além do que os analistas previam no início do ano, mas a taxa de desocupação ainda é elevada (8,3%), correspondendo a nove milhões de pessoas desocupadas, para não falar das milhares que trabalham na informalidade e das que se ocupam menos horas do que gostariam e, logo, ganham menos do que necessitam. O número elevado de postos de trabalho criados em 2022 se deu principalmente no setor de Serviços, onde há baixa produtividade, muita informalidade e baixos rendimentos. O rendimento médio real até subiu em 2022, muito em função das manobras eleitoreiras, como a redução forçada da tributação sobre os combustíveis e o gás de cozinha, mas no trimestre terminado em outubro ainda estava 2% menor que o seu correspondente de três anos atrás.

Enfim, as vendas estagnadas do Comércio varejista e o número recorde de famílias endividadas e inadimplentes não parecem corroborar a hipótese de que estejamos vivendo um tempo de mercado de trabalho aquecido, tal que proporcione pressão de demanda capaz de justificar aumentos de preços. Pelo contrário, o que se viu em 2021 e 2022 foi uma inflação essencialmente explicada pelo lado da oferta, com frustração de safras agrícolas, elevação de preços internacionais de várias commodities, em especial o petróleo e derivados, e diversos “solavancos” em muitas cadeias produtivas mundiais e nos transportes marítimos, em função dos ajustes impostos pela pandemia.

Não me parece que os números conhecidos até aqui amparem a hipótese de uma economia funcionando já perto do seu limite de capacidade, de tal forma que seria desaconselhável o novo governo praticar uma política fiscal ativa com o objetivo de melhorar a curto prazo as condições de vida da população mais carente e ajudar a retomar a atividade. Na verdade, uma política fiscal ativa no curto prazo teria a capacidade de mostrar o caminho escolhido por Lula 3, de tal forma a incentivar o investimento privado que seria a base para aumentar a taxa média de crescimento da economia brasileira. No curto prazo, a política fiscal ainda ajudaria a combater a desaceleração em pleno andamento.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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