Opinião
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20 de dezembro de 2022
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08:22

Os tempos no déjà vu (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Quem não viveu ao menos um déjà vu ? Ou melhor, quem não o viu ? A expressão francesa penetrou em várias outras línguas a tal ponto que ela dispensa tradução. 

Trata-se de algo já visto, certo, mas não somente. O fenômeno implica um déjà senti, um déjà vécu. Um já sentido, um já vivido, que se vai tão logo nos invade. Já passou, déjà passé. Tão logo ele começa, terminou. E nós por aí ficamos profundamente implicados, em suspenso, tentando situá-lo, e nos perguntando onde aquilo teria acontecido ? 

Se o fenômeno é efêmero, sua vivacidade é suficientemente intensa para nos deixar marcados pelo sentimento de uma dupla perda. A primeira é que, apesar da evocação íntima de algo familiar, encontramo-nos na impossibilidade de determinar o que e quando exatamente foi “visto”. A segunda perda, consequência da primeira, é a busca, em vão, de reencontrar este efêmero déjà vu, quase imperceptível, que vai embora tão rapidamente quanto chegou.   

É isso mesmo : uma vez reconhecido como algo vivido, imediatamente ele nos escapa. Mas já vivi isso ? Afirmamos interrogativamente. Onde ? Quando? Tarde demais. Ele já se foi. E nós ficamos, em um limbo, buscando as trilhas do momento passageiro, fugaz, tanto quanto a lembrança à qual ele nos reenvia. Em uma fração de segundo temos assim o privilégio de uma dupla perda. 

Como assim privilégio ? Faremos o elogio da perda ? De modo algum. Apenas o da vantagem de poder considerar as dimensões do tempo para as quais as perdas do déjà vu nos levam. 

Podemos nos satisfazer com uma máxima tipicamente americana como “time is money”, nos iludindo com a possibilidade de um ganho, enquanto que de fato sempre perdemos. Aliás, “sempre perdemos” é uma formulação pretensiosa que supõe termos tido a posse de algo – do tempo – que perderíamos após. Não é certo que a vida possa ser assim concebida. O dinheiro talvez seja uma das formas de essencializar a efemeridade de um tempo vivido compensando a nossa falta de domínio sobre ele.

O sociólogo Norbet Elias, em seu livro “Sobre o Tempo”, estuda a evolução, as transformações, as diferentes formas de medir, calcular, dar forma e objetalizar a noção de tempo, por exemplo, com a construção do calendário, que hoje vivemos como se sempre tivesse existido. Numa sociedade sem esse referencial, a sucessão dos eventos e da vida vivida não se apreende em anos: afirmar que “Fulano tem 54 anos” não é possível, seria impensável. Pensemos também no tempo teatral na época de Molière. O corte entre os atos não era escolha estilística devido ao texto mas dependia da duração da vida das velas que iluminavam a cena, logo, o entreato não era intervalo para esticar as pernas, ir ao banheiro ou praticar a galanteria, mas era a pausa necessária para a troca das velas.  

Mas o tempo que orienta nossas vidas não é somente sucessão e, se o déjà vu implica um retorno, é também para lembrar que há repetição, para o bem e para o mal, parafraseando a máxima matrimonial.      

“Sobre a Transitoriedade” é o título de um pequeno texto de Freud, pouco conhecido, escrito durante a primeira guerra mundial. Ele conta uma caminhada sua na companhia de um amigo e de um poeta, que sabemos ser Rainer Maria Rilke. Freud se atem às obervações pessimistas deste que, durante a caminhada, não consegue desfrutar da beleza que a natureza oferece naquele dia de verão por imaginar que ela está condenada à extinção com a chegada do inverno. Freud interpreta a posição do poeta como uma “anticipação de um luto pela morte da beleza”. Mas Rilke acrescenta que gostaria de poder admirar tamanha beleza se não fosse despojada de seu valor por estar fadada à transitoriedade. Ou seja, a transitoriedade do que é belo implica, para ele, uma perda de seu valor. Ora, Freud, lê inversamente esta questão, lembrando algo por vezes doloroso mas verdadeiro; para o psicanalista, o valor da fruição eleva-se exatamente em razão da limitação de possibilidade da dita fruição, seu valor deve-se à escassez do tempo, a seu limite. Em suma, a beleza da natureza, que cada vez é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. Mais ainda, se devemos conceber que o valor da fruição da vida deve-se à sua finitude, que no mundo nós é que somos transitórios, tendemos, por vezes, a esquecer que a permanência é unicamente propriedade da “natureza” que nos envolve. 

O fim de cada ano parece convergir para esta dupla face temporal pela qual, queiramos ou não, somos tomados. De um lado, mais um ano que termina, datas festivas que reúnem as pessoas, hora de fazer o balanço. Do outro, promessas de um ano melhor, projeções e apostas de um feliz ano novo sucedendo o adeus ao ano velho. No interstício, cada um de nós tentando estabelecer, daquilo que se repete, o que se gostaria de conservar e, dos eventos que se sucedem, os que são desejados. Porém, parece desejável lembrar também que a intensidade do que se vive pode habitar na brevidade de um déjà vu que se insinua sem pedir permissão.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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