Opinião
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8 de dezembro de 2022
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14:43

O segundo turno, visto desde Portugal (por Carlos Frederico Guazzelli)

Foto: Ricardo Stuckert
Foto: Ricardo Stuckert

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Durante o interminável outubro passado, enquanto se desenrolavam os acontecimentos que decidiriam o futuro do país, circulou nas redes sociais virtuais uma divertida mensagem de áudio, em que um português alinhava as razões pelas quais os eleitores de Bolsonaro, em caso de derrota de seu candidato, não deveriam exilar-se no seu país. 

  Isto porque, dizia ele, em seu inconfundível sotaque, em Portugal o governo é dirigido pelo Partido Socialista; além do mais, os comunistas também têm representação partidária na Assembleia da República e em diversas Câmaras Municipais (o que chamamos aqui de Prefeituras). Não bastasse isso, não é crime o porte de pequenas quantidades de substâncias entorpecentes para uso próprio – enquanto o de armas é severamente restrito em lei; a homofobia e o racismo são reprimidos, e negros, mulheres e população LGTBQI+ têm seus direitos respeitados. E o sistema público de saúde garantiu, e continua garantindo a vacinação geral contra a Covid-19, de tal sorte que a pandemia foi controlada e os números de contaminados, internados e óbitos foram dos melhores do planeta.

Sabedor de que estava passando então uma boa temporada na Terrinha, um amigo enviou-me estes comentários irônicos, acrescentando que eu devia estar feliz por estar ali. Mas o certo é que, tirante a alegria do reencontro e convívio com um filho que vive e estuda em Portugal, até o desfecho favorável do segundo turno da eleição presidencial, vivemos, nós também, e de resto a grande maioria dos brasileiros lá radicados, a mesma angústia sentida pelos democratas que resistiam, no Brasil, às ameaças e ataques do Boçal e seus asseclas, nos estertores de seu (des)governo.

Não nos era possível, simplesmente, ignorar as manobras escancaradamente ilegais – desde a compra deslavada de votos por meio de benesses proibidas pela Constituição e a legislação eleitoral, até os constrangimentos mais absurdos aos trabalhadores, nas fazendas, fábricas e lojas – mediante as quais o truculento ocupante do Planalto avançava diuturnamente sobre o eleitorado. Ligados pelas mídias digitais, partilhamos nossa comum ansiedade com os amigos e amigas que aqui também sofriam, neste período de indefinição, medo e esperança.

  Até que, enfim, em plena madrugada do dia 1º de novembro, mais nublada que chuvosa, em uma travessa no Porto – situada, sintomaticamente, ao pé da Praça da Liberdade – pudéssemos confraternizar, abraçados e chorando, com um grupo de brasileiras e brasileiros, que não conhecíamos, e provavelmente nunca mais veremos, pela tão esperada vitória da democracia e da civilização, sobre o autoritarismo e a barbárie.

Importa referir que, neste momento, talvez mais que em qualquer outro, as estreitas relações entre nossos países têm proporcionado aos portugueses um amplo conhecimento sobre a realidade brasileira – em especial, acerca dos espantosos acontecimentos políticos dos últimos anos. É verdade que, como o historiador Carlos Fico denomina, existe um secular “estranhamento” entre Portugal e o Brasil, fenômeno cuja origem ele identifica, em suas pesquisas, no processo de nossa independência – ou da “separação”, como preferem dizer os lusos. 

  Mesmo assim, é inegável que, em especial nas últimas décadas, tem havido uma reaproximação entre as duas nações, devida a diversos fatores – a começar, pelo processo de redemocratização ocorrido, nos dois lados do Atlântico, a partir de 1974 e 1985, respectivamente lá e aqui, passando pela intensificação do intercâmbio econômico e cultural e, nos últimos tempos, a crescente migração de brasileiros para Portugal. A este respeito, estima-se que, hoje, residam ali mais de trezentos mil compatriotas nossos – o que, em um país com pouco mais de dez milhões de habitantes, constitui-se em um expressivo contingente.

Natural, assim, que se tenha ampliado muito a visibilidade do Brasil em terras lusitanas – seja pela contínua atenção das mídias, inclusive as digitais, aos assuntos relacionados a ele; seja pela presença contínua de nossos artistas, desportistas e celebridades, e mesmo das novelas e espetáculos brasileiros, que ali aportam à toda hora.

Ademais, a ascensão de Lula ao poder, no início da primeira década deste século, os êxitos de sua administração e a adoção por seu governo da diplomacia “ativa e altiva” – o que incluiu a intensificação da proximidade com a União Europeia e a Comunidade Lusófona, em particular – ajudaram a aumentar ainda mais a exposição do Brasil junto ao povo português, inclusive tornando-o um dos seus destinos turísticos preferidos.    

Diante disso, foi com um misto de espanto e horror que os portugueses acompanharam, em 2018, a eleição para o principal cargo público de nosso país, de um político notoriamente despreparado, um personagem cujas inclinações fascistóides e misóginas, homofóbicas e racistas, eram do conhecimento generalizado, aqui e no exterior. Apesar da repercussão da deposição ilegítima de Dilma Rousseff, e do processo judicial-midiático que levou à prisão e afastamento de Lula daquele episódio eleitoral, os importantes avanços verificados no Brasil em seus governos – em todos os campos, social e cultural, político e econômico – não sugeriam aos lusitanos o trágico desenlace que significou a chegada do Boçal ao poder, quatro anos atrás.

Assim, a vitória eleitoral de Lula e seus aliados, antigos e novos, unidos todos em torno das bandeiras da reconquista da democracia plena e do estancamento da destruição a que vem sendo submetido o Brasil, nos mais variados domínios – desde o ambiente natural até a cultura, passando pela economia e sociedade – foi recebida com alegria e alívio também pelos lusitanos. E, claro, como não poderia deixar de ser, pela ampla maioria dos brasileiros – o maior eleitorado no estrangeiro – que compareceram aos locais de votação em Lisboa, Porto e Faro, e ali sufragaram nossa maior liderança política.

Não por outra razão, ao retornar da auspiciosa viagem que fez ao Egito, no encontro da COP, Lula fez questão de ficar dois dias em Lisboa, onde foi festivamente recebido pelo presidente da República Portuguesa e por seu primeiro-ministro, além de centenas de patriotas nossos ali residentes – que vislumbram seu retorno à cadeira presidencial, depois dos abusos e violências ilegais que lhe foram impostos, como o início necessário da reposição das coisas ao seu devido lugar, o lugar da democracia.

E, em se tratando da pátria de Fernando Pessoa, parodiando seus versos imortais, cabe sempre lembrar, diante do mar de águas salgadas pelas lágrimas vertidas pela morte de milhares de vítimas da pandemia e do neofascismo, que a luta valeu a pena – porque nossa alma não é pequena!

(*) Defensor Público estadual aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade -RS (2012-2014) 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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