Opinião
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6 de dezembro de 2022
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07:43

Enola Holmes, mas não ‘alone’, no movimento feminista (Coluna da APPOA)

Foto: Divulgação/Netflix
Foto: Divulgação/Netflix

Volnei Antonio Dassoler (*)

Imerso num mundo balizado pelo simbólico (isto é, um sistema de representação baseado na linguagem), o humano encontra-se permanentemente afetado pela interação compulsória com a realidade e com o que desta lhe escapa. Longe de gozar de uma condição divina, sua existência é irremediavelmente encarnada, o que significa dizer que seu corpo se movimenta pela esfera pública constituindo-se como fenômeno social e político nessa arena que reúne numa relação indissociável as vicissitudes dos dramas subjetivos e os acontecimentos coletivos de alcance histórico. 

Recentemente assisti em sequência aos dois filmes da série Enola Holmes, disponíveis na plataforma Netflix. Adaptação da obra Os mistérios de Enola Holmes, de Nancy Springer, composta por sete livros dirigido ao público juvenil e publicados a partir de 2006. Sem a pretensão de ser um “filme cabeça”, o roteiro se estrutura em torno da história da irmã mais nova do famoso detetive inglês Sherlock Holmes, personagem consagrado do escritor Arthur Conan Doyle. Se Sherlock Holmes é um detetive do sexo masculino idealizado por um autor homem, Enola (nome que de trás para frente lê-se “alone”, que, em inglês, quer dizer “sozinho/a”) é uma detetive feminina, personagem de uma obra escrita por uma mulher. Além de oferecerem um bom entretenimento, os filmes, ambientados em meados dos anos 1880 na Inglaterra, propõem uma montagem crítica do lugar da mulher nesse período histórico. Assim, o protagonismo feminino ordena a narrativa da busca pela solução de um mistério entrelaçada à emergência do movimento feminista no final do século XIX. 

No primeiro filme (2020), temos a apresentação da personagem e da sua trajetória de vida, associada grandemente ao desejo materno de transformar o mundo em um lugar mais inclusivo e menos opressivo. Para tanto, a mãe está disposta a correr riscos envolvendo-se no pré-movimento do sufrágio feminino e oferecendo à filha uma modalidade de educação que lhe autoriza ampliar o escopo de desejos e construir caminhos diferenciados dos ditames sociais da época. 

  No segundo filme (2022), vemos a jovem detetive avançar pelo território masculino (pode-se ler “espaço público”) numa espécie de trabalho investigativo e ativismo. Este percurso aparece ricamente matizado em inúmeras cenas de enfrentamentos com aqueles que veem as reivindicações por direitos iguais como ameaçadora do status quo social. 

Uma das abordagens denuncia a vigência de um modo sutil de violência exercido sobre o conjunto das mulheres que se faz sem o uso da força física externa, mas por meio de regras ou restrições, inclusive no ambiente doméstico, controle respaldado pela maioria da população que entende como parte do funcionamento natural das coisas do mundo. Isso aponta para o fato de que todo e qualquer arranjo social pode distribuir igual ou desigualmente direitos e suas garantias entre homens e mulheres, brancos e negros, héteros e gays. Essa percepção não parece ser algo fácil de compreender como nos faz saber a fala da personagem Edith que no primeiro filme diz algo mais ou menos assim: “você (Sherlock Holmes) não se interessa por política porque não tem o mínimo interesse em mudar um mundo que o favorece tanto”. Nesse sentido, os movimentos ativistas surgem contemporaneamente como novos operadores políticos no campo público, explicitando o caráter falacioso que separa a dimensão privada (aquilo que se vive na particularidade dos encontros) do jogo de poder que marca a vida social. 

O filme é interessante porque nos mostra dois movimentos acontecendo simultaneamente. O primeiro é o relativo às mulheres das classes populares, submetidas a condições precárias de trabalho, e à sua luta por melhores condições. Quem assistiu ao segundo filme, onde esse contexto é explícito, deve ter se chocado ao ver as crianças fazendo parte da força de trabalho de uma fábrica em condição de igualdade com os adultos. As cenas deixam explícito que as mulheres já trabalhavam, recrutadas pela necessidade de sobrevivência e pela urgente demanda de mão de obra trazida pela Revolução Industrial; no entanto, não eram todas as mulheres as que se incluíam nesse grupo: eram apenas as mulheres e crianças das classes populares. O outro movimento é o constituído pelo percurso de Enola, que, instruída e pertencendo à classe média, almeja alcançar o mesmo status social do irmão como detetive (poderia ser advogada ou médica) mesmo sendo mulher (pois ela mostra-se tão competente e talentosa quanto ele). A trajetória percorrida por Enola é parte deste movimento de reivindicação por liberdade de escolha e por igualdade de direitos em relação aos homens, mas traz a marca de ser liderado por mulheres de classe média que aspiravam a ter uma maior participação social. Essa dupla face nos alerta para o fato de que as lutas das minorias sociais, em especial em países desiguais, devem ser sensíveis à presença de múltiplos marcadores e variações culturais que lateral e transversalmente as permeiam.

Muitos anos de clínica psicanalítica não foram suficientes para me permitir ouvir um paciente do sexo masculino dizer que invejava a condição feminina. O inverso, sim, aconteceu: eu já escutei, algumas vezes, mulheres declarando que, se pudessem, gostariam de ter nascido como homens. Obviamente, essa manifestação não se traduz rasamente como inveja do pênis (falo), mas, deve ser lido, sim como indignação legítima (e, portanto, nem histérica, nem ressentida) que se coloca ao serviço de, sem querer apagar as diferenças, denunciar a desigualdade de direitos. 

A trajetória pessoal da protagonista convida o espectador a percorrer uma jornada intensa de desafios e descobertas e o faz parceiro desse caminho, em especial, nos momentos em que seu olhar se dirige diretamente a câmera e nos encontra. A aposta é de que possamos nos importar com a pertinência do debate público e de respectivas ações quanto à representatividade e igualdade de gêneros. 

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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