Opinião
|
21 de dezembro de 2022
|
07:10

A nova década perdida (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Foto: Agência de Notícias Andes
Foto: Agência de Notícias Andes

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“América Latina está atrapada en un ‘Momento Gramsciano’, cuando lo viejo se desvanece, pero lo nuevo no logra nacer. En este interregno —como nos advertía Gramsci— es casi inevitable que aparezca ‘una gran variedad de síntomas dañinos’.” (José Gabriel Palma, El Trimestre Económico, 2020).

A Nova Década Perdida

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) acaba de divulgar o seu “Balanço Preliminar” sobre o desempenho econômico da região. Estima-se que o produto interno bruto do conjunto dos países latino-americanos terá um incremento de +3,7% em 2022 e de +1,3% em 2023. Tais projeções convergem com a revisão de outubro do Fundo Monetário Internacional (FMI), cujas taxas eram de +3,5% e +1,7%, respectivamente.

Está em curso um processo de desaceleração, que não se releva como um problema regional exclusivo, posto que as maiores economias do globo, especialmente Estados Unidos, área do Euro e China, e que são os nossos principais parceiros comerciais e financeiros, experimentam intensa perda de dinamismo. A inflação em alta, o aperto nas políticas monetárias, a guerra na Ucrânia e os profundos desequilíbrios financeiros, com destaque para os elevados níveis de endividamento de famílias, empresas e governos, são obstáculos que não podem ser minimizados.

No caso específico da América Latina, vive-se neste final de 2022 a combinação entre aspectos positivos e negativos. De um lado, a melhoria nas receitas externas derivadas das exportações de recursos naturais, das remessas de imigrantes e do turismo, com alguma recuperação nos mercados de trabalho e na arrecadação de impostos. De outro, as taxas de juros mais elevadas nas economias centrais ampliaram os custos de captação em moedas conversíveis e tornam ainda mais graves os desequilíbrios potenciais gerados pelos níveis elevados de endividamento. O crédito também ficou mais caro e escasso nos mercados locais. Em conjunção com a maior inflação, tais aspectos contaminam negativamente a disposição dos investidores e famílias em correr riscos e expandir gastos. 

Para além dos aspectos conjunturais, os quais já carregam desajustes diversos acumulados no tempo, o informe da Cepal aponta para um aspecto ainda mais desafiador: o decênio 2014-2023, que se seguiu ao do super ciclo de preços das commodities, terá um ritmo médio de crescimento da renda de +0,9% a.a., inferior àquele registrado nos anos 1980 (2,0%), que ficaram marcados pelo epíteto de “década perdida”. Em uma perspectiva ampliada, as economias latino-americanas cresceram +5,5% a.a. entre 1951 e 1979, e +2,5% a.a. de 1980 até 2019. A pandemia da Covid 19 gerou um “empate técnico”, com variação do PIB de -6,8%, em 2020, e de +6,7%, em 2021. Já o biênio 2022-2023 empurra a região para abaixo da média histórica pós-crise da dívida externa (1982). 

O baixo crescimento da renda é resultado direto das dificuldades de sustentar ciclos virtuosos de expansão na formação bruta de capital fixo, com ampliação na qualificação nos recursos humanos e incorporação de progresso tecnológico. Por decorrência, os ganhos de produtividade são modestos e, assim, insuficientes para garantir prosperidade coletiva ampliada. De acordo com o Perspectivas Econômicas Regionais, do FMI (outubro de 2022) a região: “… exibe uma substancial defasagem de produtividade em relação a outros mercados emergentes e economias em desenvolvimento e com as economias avançadas, o que é um fator-chave por trás da incapacidade da região de sustentar um alto crescimento econômico.” 

A tabela abaixo mostra a evolução da produtividade do trabalho em países selecionados. Destaca-se o fato de que as três maiores economias latino-americanas – Brasil, México e Argentina – apresentam um desempenho particularmente desfavorável.

Taxa de Crescimento da Produtividade do Trabalho

Economias Selecionadas, 1951-2022 (% a.a.)

  1951-1980 1981-2000 2001-2022
China 4,0 7,5 8,3
Índia 1,7 3,7 6,2
Vietnã 0,7 3,1 4,7
Indonésia 2,8 2,4 3,1
Filipinas 2,6 -0,1 3,0
Peru 2,4 -0,9 2,9
Colômbia 2,3 0,1 2,5
Tailândia 3,8 3,9 2,4
Coreia do Sul 4,9 5,4 2,2
Chile 2,2 1,9 1,6
EUA 1,9 1,7 1,2
Brasil 4,1 0,0 0,9
Argentina 2,1 0,0 0,5
Alemanha 4,1 1,4 0,5
Japão 6,5 2,3 0,3
México 3,1 -0,3 0,0
Fonte: elaboração própria com dados da Total Economy Database™ (“TED”)

Argentina e México, especialmente este último, que adotaram estratégias mais agressivas em suas reformas pró-mercado nos anos 1990 e 2000, experimentaram incrementos de produtividade ainda menores que os do Brasil, cujo retorno ao desenvolvimentismo, nos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, não logrou romper com a trajetória de semiestagnação com perda de relevância na economia global.

A Onda Rosa e o Horizonte Cinza

É com o peso de um longo declínio relativo, eventualmente aliviado por fatores externos, como o boom de commodities entre 2002 e 2014, que os principais países latino-americanos passaram a ser governados por coalizões de esquerda e centro-esquerda. Discute-se se há uma nova “onda rosa” com as eleições de López Obrador no México (2018), Alberto Fernández na Argentina (2019), Gabriel Boric no Chile (2020), Pedro Castillo no Peru (em 2020, com posterior afastamento, em 2022), Gustavo Petro na Colômbia (2021) e Lula no Brasil (2022). 

Os céticos argumentam que o ambiente geral segue sendo de divisão profunda nas respectivas sociedades, tanto em temas políticos, sociais e econômicos, quanto identitários. E que, ademais, as vulnerabilidades estruturais, internas e externas, indicam ser difícil reproduzir o padrão de expansão de gastos sociais observados nos anos 2000, quando da primeira onda rosa. Esta se confundiu com aquilo que a literatura denominou de “década dourada”, período de melhorias sociais diversas, em um ambiente de relativa estabilidade macroeconômica.

Cabe lembrar, como destacou José António Ocampo, que a década dourada só pode ser assim considerada quando contrastada com os anos 1980 e 1990. Se, por um lado, foram inequívocos os processos de aceleração no crescimento econômico e de fortalecimento do tecido social, por outro, não foi menos marcante o desempenho inferior ao das economias mais dinâmicas, especialmente as localizadas na Ásia. Ainda assim, foi nos marcos da maior integração entre as economias locais e os mercados globais, estes estimulados pela demanda chinesa por recursos naturais, que se verificou um alívio nas restrições fiscal e externa. Isso possibilitou maiores gastos públicos em políticas de inclusão social, sem gerar um novo processo de sobre-endividamento. 

No começo dos anos 2000, a dívida líquida dos governos centrais equivalia a 41% do produto interno bruto (PIB) da América Latina, valor que caiu para 29% entre 2011-2013. No mesmo período, a dívida externa total – pública e privada – recuou, também como proporção do PIB, de 42% para 32% do PIB. Desde 2014, ambos os indicadores voltaram a se deteriorar, atingindo 49% (dívida pública) e 52% (dívida externa) em 2021.

Na década dourada, a inflação seguiu em níveis historicamente baixos, com exceção dos casos de Argentina e Venezuela. A redução da pobreza monetária e da desigualdade na distribuição de renda, a ampliação no emprego formal e os indicadores mais robustos em área como educação e saúde, foram particularmente mais pronunciados em governos “rosa”, conforme constatou o Banco Mundial: “… os governos de centro-esquerda são tipicamente mais propensos a se envolver em redistribuição adicional do que os de centro-direita.” (World Bank, 2019, p.45). Hoje, os “governos rosa” voltaram, mas o quadro macroeconômico favorável já não existe.

Em entrevista recente, o novo Secretário Executivo da Cepal, Manuel Salazar-Xirinachs, foi questionado sobre a eleição de governos de esquerda na região. Para ele tais processos refletiriam o desejo por maior equidade em sociedades marcadas por profundas desigualdades: “…. é isso que a cidadania deseja, empregos de qualidade, melhores salários, redução da pobreza, oportunidades de saúde e educação.”. Todavia, Salazar-Xirinachs acrescenta que o caminho para viabilizar tais objetivos não é trivial, pois envolve a introdução de mudanças estruturais e de políticas econômicas “ousadas”, as quais dependem da combinação entre qualificação técnica de seus executores e capacidade política de se construir níveis mínimos de consenso social. 

In verbis: “… esses governos têm um grande desafio. Exigem-se capacidades técnicas, operacionais e políticas nas instituições, requerem-se esquemas de boa governança, exige-se também dinheiro, e agora existem governos com restrições fiscais apertadas. E aqui o importante que temos dito é que não é hora de políticas tímidas, de gradualismo. O ideal seria que os países pudessem pactuar grandes transformações estruturais, cuja lista é muito clara: desenvolvimento produtivo, redução da desigualdade, redução da pobreza, combate ao apagão da educação. É importante estar ciente de que a América Latina enfrenta uma situação muito difícil, e tentar promover mudanças realmente estruturais.”

As dificuldades apontadas por Salazar-Xirinachs fazem parte da realidade cotidiana dos governos eleitos desde 2018. Com o crescimento em baixa e os desequilíbrios macroeconômicos e financeiros em alta, a nova onda rosa conviverá com um horizonte cinza. Mais do que nunca, os países da região precisam liberar sua “imaginação social”, para colocar nos termos do sempre instigante economista José Gabriel Palma. Até porque, o trabalho de preservação das democracias constitucionais seguirá difícil na ausência de melhorias substantivas na vida das pessoas o que, por sua vez, demanda níveis muito mais robustos de expansão da renda do que aqueles experimentados nos últimos quarenta anos. 

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora