Opinião
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28 de novembro de 2022
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06:58

ENEM: povos tradicionais e as cortinas de fumaça (por Thiago Suman e Guilherme Suman)

Violência contra povos indígenas virou trágica rotina no Brasil. Foto: Relatório Cimi 2020/Divulgação
Violência contra povos indígenas virou trágica rotina no Brasil. Foto: Relatório Cimi 2020/Divulgação

Thiago Suman e Guilherme Suman (*)

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio)  é, atualmente, uma prova composta por quatro áreas do conhecimento e uma prova de Redação atrelada às Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, que garante a principal forma de ingresso à educação superior realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,(INEP), uma autarquia vinculada ao Ministério da Educação do Brasil. 

Em suma, a edição da prova agora em 2022 foi excelente, com dinâmica interdisciplinar, fluída, trazendo assuntos de impacto para formação cidadã e afins. 

Segundo Daniel Cara, pesquisador e professor da USP que colabora com a equipe de transição do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, faz-se necessário reconhecer e saudar os responsáveis por preservarem a dignidade da prova intocada: “é preciso registrar que os servidores do INEP, que mantiveram o Enem forte, merecem o agradecimento do Brasil”. 

Dentre as disciplinas organizadas por áreas, destaque dado para a prova de Redação. A exigência desta consiste em uma produção dissertativo-argumentativa com uma proposta de intervenção a um problema-situação apresentado pela banca realizadora, segundo versa a Cartilha do INEP. A prova, ainda, adiciona textos motivadores como auxílio aos candidatos, que são um conjunto de referências apresentadas para construção da contextualização. Em 2022, o tema foi “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil“. Seus suportes, entre matérias jornalísticas, gráficos e apontamentos do governo, refletiam sobre os grupos tradicionais e a diversidade social brasileira. 

Por meio das informações auxiliares, entende-se os povos e comunidades tradicionais como grupos diferenciados pelo aspecto cultural, que se afirmam como tais, cujas organizações sociais são estruturadas de modo singular, ocupantes de territórios e usuários de seus recursos naturais para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica…

À exemplo, a prova destacou “pescadores artesanais, quebradeiras de Coco Babaçu, apanhadores de flores Sempre-Vivas, caatingueiros, extrativistas, para citar alguns, todos considerados culturalmente diferenciados, capazes de se reconhecerem entre si”…

Referente ao proposto nesta edição, cabe dizer que foi relevante e imprescindível, sim, até mais agudo do que muitos imaginavam que poderia ser, pois se temia que por parte do atual governo houvesse algum abandono ou sublimação de conjunturas de maior sensibilidade, mesmo os mais urgentes, em nome de postura discursivo-ideológica, o que, de fato, não houve. 

Quanto a isso, ressalvas à parte, é importante lembrar que ao redigirem seus escritos, os candidatos e candidatas de todo o país, em número expressivo, se colocam não só à prova, mas reflexivos acerca da temática a cada ano. Pelo caráter de intervenção, isso incorpora após o exame (em salas de aulas, conversas de bar, na sala de jantar, no jornal nacional, etc) o debate consciente, humanizado e plural, por se pensar junto sobre as mais variadas mazelas que acometem a sociedade, conduzindo o interesse público a um pensamento crítico e coletivo. 

Contudo, percebamos, sem os eufemismos e comemorações efusivas pela prova não ter abolido um Chico Buarque ou contornos sociais como racismo estrutural e índices de feminicídio, conforme se arriscava desconfiar, que há resistência da gestão bolsonarista em falar de povos indígenas e comunidades quilombolas. O atual governo, quando se dispôs em tratar o caso, escorregou textualmente até em um certo tom de desdém disfarçado de informação. Isso se percebe no primeiro texto motivador: “Você sabe quais são as comunidades e os povos tradicionais brasileiros? Talvez indígenas e quilombolas sejam os primeiros que passam pela cabeça, mas, na verdade, além deles, existem 26 reconhecidos oficialmente e muitos outros que ainda não foram incluídos na legislação“.

Jovem liderança indígena do Amazonas que atua como pedagoga, enfermeira e política, Vanda Witoto destaca os altos e baixos da abordagem: “Primeiro desenho a importância de se trazer a temática indígena para esse espaço de educação. Se levarmos em conta – dentro de uma perspectiva histórica – o quanto os povos indígenas vivem às margens desse processo de extrema invisibilidade, de negação da sua memória, também dos seus corpos e ainda da sua identidade, consequências diretas do processo de colonização, genocídio e, sobretudo, do etnocídio”. 

Vanda aponta que trazer essa ambientação superficial é “apenas um grão de areia no deserto”. Pois não há na base da educação do país, por exemplo, curriculum de fato dedicado aos indígenas.

Witoto ainda referenda a lei 11.645, que norteia a obrigatoriedade de as escolas públicas lecionarem sobre a população indígena e afro-brasileira, mas lamenta que não haja o cumprimento efetivo da norma. Ela protesta: “O que nós vemos na prática são raríssimas escolas lembrando da existência desses povos (e apenas nas datas comemorativas). Isso não basta! O que queremos é uma educação em que as crianças e os jovens tenham o direito de saber de sua própria história, pois ser brasileiro é pertencer a uma das culturas milenares desta civilização ancestral e que nosso país, em termos culturais, tem relação a partir dos laços com os indígenas. Definitivamente, resistimos há mais de 522 anos”.

A educadora indígena vê nesse lapso da formação educacional o que prejudica os alunos sobre a composição de seus repertórios adequados para melhor desempenharem acerca das particularidades que fazem dos povos originários tão singulares em relação aos demais grupos tradicionais. 

Salienta-se que por povos originários se definem todas as populações descendentes dos primeiros habitantes de um território. No Brasil, esses povos representam 0,4% da população total do país, segundo aponta o IBGE. Ou seja, os povos originários – os indígenas – são um dos grupos tradicionais, mas as demais comunidades tradicionais não são originárias. 

Mas afinal, o que incomoda no tema de Redação do Enem?

De arrancada o enunciado coloca indígenas quilombolas como evidência primeira na memória imediata quando se trata de grupos tradicionais, logo ressalta que há uma extensão de outros tipos. Estes, igualmente carentes de reconhecimento social e políticas públicas favoráveis, são de total importância e merecem digno tratamento e protagonismo também. Todavia, em retrospectiva, a prova de 2014 a 2021 levantou questões como: publicidade infantil, violência contra a mulher, combate à intolerância religiosa, formação de surdos no país, democratização do acesso ao cinema,  manipulação dos usuários e controle de dados na internet, estigmas associados às doenças mentais (impresso), diminuição das desigualdades entre regiões brasileiras (digital), invisibilidade e registro civil e o acesso à cidadania. Isso é, na última década a prova não tratou frontalmente sobre povos originários e a questão político-social dos negros brasileiros, como o genocídio étnico, o risco de extinção, os preconceitos e violências escalonadas contra suas existências, a histórica defasagem de seus direitos e a sonegação de suas dignidades em nome de colonização, política de extermínio e desabilitação social, as desapropriações territoriais, apagamento de suas práticas ancestrais, demonização de suas culturas em nome de um nada laico estado evangelizado, etc. 

Isso caberia sem a falsa simetria sutil sugerida pela banca ao tratar alinhadamente todos povos tradicionais, reforçando a existência dos menos conhecidos em detrimento dos indígenas e quilombolas. Isso, claro, levando em conta que, a fundo, o aluno não precisava, de fato, dissertar sobre todos ou profundamente a respeito de nenhum dos grupos, nem conhecer plenamente seus poréns, mas, sim, se ater à provocação que era a respeito da valorização destas comunidades, em geral. 

Daniel Cara entende que a escolha é um acerto, porém percebe que, de fato, há um descompasso na exposição: “o enquadramento pode limitar a argumentação do estudante. Espero que isso não prejudique a elaboração das redações”  

Na mesma esteira de Cara, o professor e Doutor em educação, Gregório Grisa, especialista que também colabora com a equipe de transição da pasta de educação do novo governo Lula, concorda que a proposição toca justamente circunstâncias sublimadas pelo atual presidente e distrai sobre o recorte específico quando se trata de povos originários. Contudo, Grisa ressalta a importância do que a prova propôs como essência: “É coerente com a Constituição Federal, que oportuniza o estudante refletir sobre políticas públicas intersetoriais, da educação ao meio ambiente, da saúde ao desenvolvimento sustentável, da proteção social a transição energética. Os direitos humanos são transversais por isso, porque devem orientar a agenda pública”.

Assinalando a relevância da discussão no que tange a valorização das demais comunidades tradicionais citadas, também marginalizadas, percebe-se que as notícias de apoio evidenciam, porém, suas importâncias enquanto grupos produtivos, necessariamente reunidos em uma característica em comum: a do trabalho! Essa coisa da geração de mão-de-obra, que, apesar de estar presente no contexto de indígenas e quilombolas, não é o pressuposto mais essencial de suas representações. Ou seja, em miúdos, tais grupos agregam, segundo parece, notório valor pelo tanto que produzem, pelo esforço, pelo labor e pelo suor, dispensando a atenção sobre os pontos mais sensíveis de suas existências ou necessidades. Isso é, o destaque dado parece até perversão, sugerindo de maneira maquiada algo do tipo: (…) talvez passe pela sua cabeça indígenas e quilombolas, mas sabia que há outros grupos tradicionais que também trabalham e que são engrenagens de um sistema que se preocupa com a produção? (…) Reduzir as referências a isso é de mau gosto, no mínimo. 

Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que também integra o grupo de transição do Governo Lula na pasta do Ministério dos Esportes e que atua em pesquisa e institucionalização do combate a diversas formas de preconceito em âmbito esportivo e fora dele, entende que o assunto é de fundamental relevância, especialmente por vir de um governo que, segundo ele, nunca quis fazer nada por esses povos, porém, Marcelo também se inquieta sobre a formatação: “Quilombolas e indígenas são povos originários, que estão nesse lugar de patrimônio imaterial da sociedade brasileira por serem donos da terra e não por algum motivo específico como o trabalho, que é uma das características que liga os demais grupos tradicionais citados”.

O enunciado induz para que a sociedade se atente para esses grupos tradicionais e os veja com consideração, o que é ótimo, uma vez que gera valorização e vitrine, mas os caracteriza exclusivamente como força operativa, e sem sequer levar em conta que os indígenas e quilombolas são grupos sociais  que sofrem com maior registro de violências e atentados, sem acolhimento de nenhum  referente ao que assola esses grupos e que carecem de ação governamental para devida resolução. 

Uma gestão complacente com a prática do garimpo ilegal, da grilagem, de invasões de territórios indígenas, morticínio e queimadas à céu aberto, racismo em progressão geométrica ganhando ares de banalização, se contentou com esse tema. Naturalmente que esse agrado se dá porque a proposta ressalta o trabalho como vínculo de sociabilidade, sobrepõe ou esconde outros princípios diversos e tão mais relevantes.

A intenção de Redação não compactua, mas favorece para com a liquefação desses dois grupos. Vira de costas e desperdiça a oportunidade diante do improrrogável que é discutir as questões prementes sobre tais comunidades.

 Se apanharmos dados recentes que dizem respeito aos indígenas, como os relatórios da Comissão Pastoral da Terra, de 2021, veremos que mais de 35 mortes no campo foram registradas, contra 20 do ano anterior. Isso representa um aumento de 75% do índice de violência somente nesse cenário específico. 

Já em 2022, informações parciais apontam pelo menos 14 assassinatos só no primeiro semestre. O Pará e o Amazonas são as regiões mais acometidas pela violência contra tribos. O Relatório conta ainda que a categoria “mortes em decorrência de conflitos no campo”, que, no caso, são óbitos para além de assassinatos, oriundos de conflitos, teve uma alta de 1.100%. Foram registradas 109 mortes desse tipo, contra nove em 2020. A alta está relacionada à invasão das terras indígenas por parte de garimpeiros. Desse total de mortes, 101 são de indígenas Ianomâmis e, ainda, fora da Amazônia, há um registro de média de 45% de indígenas brasileiros que vivem em meio à graves realidades de vulnerabilidade social, campesina ou urbana. 

Resumir todas essas circunstâncias a esse pouco-caso só reforça a política que se assanha e atenta contra as identidades, culturas e demais características socioculturais que não estejam terminantemente ligadas ao redutivo tópico do trabalho, da geração de renda e da condição de serviliência e mão de obra. 

O Professor e Pesquisador de cultura Afro-Brasileira, Adriano Viaro, que é Mestre em história, com pesquisa sobre a escravidão e os Quilombos dos Palmares, entende que a proposta é uma manobra engenhosa e política de um governo que tem como intenção primeira combater todas as abordagens identitárias e, sobremaneira, dos povos mais enfraquecidos.

 “É de suma importância falar sobre os povos tradicionais, e, naturalmente quando pensamos nesse aspecto, imediatamente nos vem uma noção carregada fortemente da causa indígena e cumpre com uma agenda atual que segue diretrizes da Constituição, porém, a forma como é colocado no tópico 1 e, sobretudo, nos gráficos apresentados, é diminuir não só a pauta, como a percepção daquele que vai fazê-lo, sabendo que é um pequeno número de alunos que estão de fato preparados para desempenhar sobre a complexidade desse recorte e os demais correm o risco de se debruçarem sobre os prismas enviesados e distorcidos e assim podem construir um texto com consciência diminuída a respeito da importância desse mote”, comenta o pesquisador. 

 Viaro ainda se diz profundamente incomodado com o recorte, pois, segundo alerta, do jeito que foi colocado é pior que do que não trazer o tema, porque dessa maneira alinha-se a um viés que é manipulatório.

 Outra citação de Viaro sobre as referências deste Enem, seguindo na análise dos pressupostos motivadores, apresenta dados gráficos para equilibrar o aspecto quantitativo dos grupos sub-representados. Assim, acaba sublinhando informes para além de uma formação de consciência de cuidado para com esses povos.

 O Deputado Estadual eleito para a Assembleia legislativa do RS, Mestre em História e Ativista do Movimento Negro, Matheus Gomes, reconhece a contramão do que foi proposto: “De fato, especialmente a segunda matéria pode induzir os estudantes a algumas confusões, misturando povos originários com segmentos religiosos, culturais e atividades econômicas, como se não existisse tal diversidade no interior das próprias comunidades indígenas e quilombolas”. 

 Mas, apesar desse desalinho já realçado, Gomes se entusiasma com a intenção da prova: “É salutar e instiga os estudantes à reflexão de uma questão de primeira ordem para a integração nacional democrática, ecológica e antirracista”. 

 Com base nas colaborações de diversos especialistas, faz-se questão de reiterar a grande relevância da ideia central, especialmente em relação às diversas possibilidades vazias que poderiam ser utilizadas como desvio pleno de algum problema real potencializado nos últimos anos. Entretanto, o que não está dito claramente muitas vezes é o objetivo da mensagem, dando-se mais atenção quando se trata de comunicação em massa como um concurso nacional.

 Isso direciona inconsciente coletivo e reposiciona, eventualmente, o viés sociocultural de quem, em formação, é comunicado, reforçando que esse conteúdo será tratado por tal ângulo no futuro ao se reportarem ao tema em escolas, cursinhos e afins. Ou seja, se replicará e consolidará uma ideia que trata pela tangente uma questão essencial, suavizando o real em nome de um ranço político-ideológico.

(*) Colaboraram na produção desse artigo: Vanda Witotto, Matheus Gomes, Marcelo Carvalho, Daniel Cara, Adriano Viaro e Grerório Grisa 

Thiago Suman, jornalista e professor de filosofia e sociologia em cursos pré-vestibular e escolas de ensino médio. 

Guilherme Suman, professor de literatura e linguagens em cursos pré-vestibular e escolas de ensino médio. 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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