Opinião
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11 de outubro de 2022
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08:32

Sessão única: uma escrita inacabada sobre os paradoxos do amor (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

“Seja lá quem te mandou
Meu amor te recebeu
E hoje o céu de sua estrela
Menino, sou eu
Menino, sou eu”

Verso da música “Iluminada” de Maria Bethânia

Esta história é um compilado de pequenos excertos clínicos recolhidos no início dos anos 2000. A mulher – com pouco mais de 30 anos – chegou no horário marcado para a primeira consulta com um sorriso suave que a apresentava como simpática. Sentou na poltrona indicada e, convidada a falar, disse que havia procurado atendimento porque se via atrapalhada com os paradoxos do amor; disse isso assim, sem meias palavras, aguçando minha curiosidade. 

Longe de qualquer humor deprimido, mostrava lucidez em seu raciocínio e, antes de discorrer sobre seu itinerário amoroso ao longo da vida, fez questão de ressaltar a importância do movimento feminista naquilo que hoje vivia com naturalidade como o direito de manifestar seus desejos, interesses e vontades no confronto com lugares preestabelecidos pela hegemonia do discurso machista. Inserida no mercado do trabalho e vivendo a liberdade sexual, não parecia apartada ou alheia às coisas da vida em geral, desde aquelas mais importantes até as triviais. 

A fala intensa e a atenção sensível que dava às palavras e ao fluxo do pensamento fazia supor que não rejeitava o inconsciente. Sua história amorosa prévia incluía dois relacionamentos qualificados como marcantes. Num deles, o fim teria partido do companheiro; no outro, a iniciativa tinha sido dela. Entendia que, por ter vivenciado términos distintos, tendo experimentado o lugar de quem havia produzido ruptura e sofrimento e também o da parte que havia sofrido as dores da rejeição, havia adquirido um relativo know-how que a colocava em vantagem para enfrentar o que viesse pela frente em termos amorosos. Antes desses relacionamentos, no intervalo entre os dois e na sequência do último, tinha se arriscado em alguns poucos encontros fortuitos, mas nenhum deles havia chegado a ser qualificado como uma boa aventura. Ao longo do tempo, havia criado suas playlists particulares às quais recorria toda a vez que se via afetada pela saudade, pela fossa ou pela paixão. Nesses momentos, sentia-se interpretada pelas palavras, frases e sons que davam repouso ao seu coração. No seu acervo, “Sonho meu” era hors concours: “sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho meu”. Em um determinado momento da sessão, fez questão de dizer que tinha inventado suas próprias frases clichês, visto que aquelas que encontrava replicadas de maneira generalizada não a acalmavam por mais do que breves cinco minutos. 

Não tinha problema em ficar sozinha, tampouco lhe causava conflito estar com alguém sem compromisso, mas esta não era – segundo ela, usando uma expressão da época – sua praia. Achava que conviver bem consigo mesma era uma qualidade a ser cultivada e que a auxiliava a escapar da angústia da espera pelo telefonema do dia seguinte cada vez que vivia algum encontro que lhe parecia promissor. Hoje, esta cena poderia ser atualizada com os traços azuis das mensagens do WhatsApp, que, quando aparecem na tela do aplicativo, confirmam que a manifestação do desejo alcançou o destinatário, indicando que o período de espera se iniciou. 

A jovem mulher se via como alguém amável e, por isso, sonhava com viver uma nova experiência amorosa, como amada e amante. Entretanto, à sua maneira, reivindicava alguma garantia de descanso emocional para fazer frente às prováveis armadilhas que todo e qualquer relacionamento dessa natureza impõe: insegurança, ciúmes, traição, violência, desencanto, ausência, angústia, dependência, perda de desejo ou amor excessivo. Sem me permitir o tempo para lhe propor discorrer sobre as tais ciladas, indaga se eu conhecia a metáfora do porco-espinho, em alusão à dificuldade dos humanos para estabelecerem uma fórmula “equilibrada” que alie a necessidade de convivência a alguma forma de proteção contra as dores e feridas que o semelhante pode causar. Respondi afirmativamente no mesmo instante em que me vi pensando na diversidade de significados que um significante como “amor” pode colocar em causa. 

A forma como a paciente percebia, sentia e descrevia sua trajetória amorosa me fez lembrar o ensaio de Roland Barthes Fragmentos de um discurso amoroso. Assim como na cena clínica, nesse trabalho, o autor dá lugar de fala ao sujeito amoroso, que, em face ao outro (objeto amado), formula perguntas e hipóteses sobre o que é o amor e o que faz com esse sentimento incerto e precioso seja vivido tão intensamente pelos sujeitos no mundo todo.

Depois de quase uma hora e em tom de cansaço, a jovem mulher formula as perguntas que permitem entrever as razões que a tinham motivado a pedir um horário de atendimento. Queria saber se ainda valia a pena acreditar no amor e se haveria um antídoto para as contradições insolúveis da experiência amorosa.

As perguntas feitas naquele início do milênio continuam sendo enunciadas nos dias de hoje. Voluntários ou não, habitamos desde sempre o campo amoroso e dificilmente conseguimos nos furtar de ansiar estar em algum lugar de exceção em relação a um outro semelhante e este em relação a nós. Usando a metáfora futebolística, jamais tiramos nosso time de campo, jamais abandonamos o jogo, dando-nos por vencidos, embora, em alguns momentos, nos convenha ir para o intervalo. Cada vez mais recorrente na atualidade, o rechaço ao amor carrega em si o rechaço ao semelhante ao generalizar os insucessos, atribuindo-os à totalidade dos encontros possíveis, algo que se opõe radicalmente ao desejo que nos anima. Entre as várias versões que cabem ao amor, formulamos uma a mais, a de ser uma experiência da condição humana que se mostra, em sua estrutura, parcialmente exitosa e parcialmente fracassada. Quanto à jovem paciente, depois daquela única sessão, recentemente a vi no show da Marisa Monte, de mãos dadas com outro alguém, cantando “Beija Eu”.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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