Opinião
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25 de outubro de 2022
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09:09

Não há ‘desmatamento’ (por Milton Pomar)

Queimada e vista em meio a area de floresta proximo a capital Porto Velho. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.
Queimada e vista em meio a area de floresta proximo a capital Porto Velho. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.

Milton Pomar (*)

Não há “desmatamento”. O que há é devastação. Desmatamento é uma palavra que suaviza a tragédia, porque passa a ideia de que apenas “tiraram o mato” de uma área. Não se “desmata” florestas. O que fazem é matar milhões de vidas – destroem fauna, flora e recursos hídricos. Tudo isso é muito mais que “tirar o mato”. Quando derrubam árvores de uma área com floresta, cortam também a vegetação arbustiva e rasteira. Não deixam nada de pé. E depois que essa vegetação jogada no chão fica bem seca, ela é queimada. Vira cinzas. Nada sobrevive. 

Uma área de 1 km2 tem 100 hectares(ha), que equivalem a 1 milhão de metros quadrados (m2). As notícias de “desmatamento”, quando se referem a 1 mil km2, não passam a dimensão real desse crime, porque a maioria das pessoas não têm noção do tamanho de área com 1 mil km2, não fazem a menor ideia da quantidade de espécies vegetais e animais que vivem em uma área com esse tamanho. E não se sabe de alguém condenado e preso por devastação ambiental em qualquer bioma brasileiro – até porque quem devasta dezenas ou centenas de km2 de florestas, cerrado ou semiárido tem muito dinheiro.

Temos que parar de utilizar esse termo, porque desmatamento é algo muitíssimo menor do que o crime ambiental cometido. Quantas milhares de espécies animais e vegetais foram mortas nos últimos 50 anos no Brasil, desde que ganhou impulso oficial, via incentivos fiscais e crédito barato para grandes empresas, a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia? 

As palavras têm força. Por isso se utiliza também o termo “floresta plantada”, porque ele passa a impressão que é possível recuperar uma área “desmatada” com o “plantio de floresta”. Não se “planta” floresta. Há plantios em grande escala de uma espécie florestal. Há plantio de espécies nativas, visando recuperar áreas degradadas. Mas não há o plantio de “florestas”, pelo simples fato que uma floresta não é apenas um coletivo de árvores, por mais abrangente que seja esse coletivo de árvores. Floresta tem fauna, floresta tem arbustos e vegetação rasteira. 

Vivenciei essa tragédia em São Félix do Xingú, sudoeste do Pará, região da Floresta Amazônica, no período de 1979/82. Primeiro trabalhando em fazenda às margens do rio Fresco, afluente do rio Xingu, e depois no projeto de colonização agrícola Tucumã. Vi grandes áreas “derrubadas” e depois queimadas. O cheiro de uma área queimada é muito perturbador. A visão de uma área queimada é algo que fica para o resto da vida. Sobrevoando a região, era possível constatar o nada total a que as derrubadas e queimadas reduziam áreas antes com florestas cheias de vida. 

O projeto MapBiomas revela que, no período 1985/2020, as queimadas no Brasil totalizaram em média 151 mil km2 por ano, dos quais 65% teriam sido de vegetação nativa. Evidentemente, há queimadas naturais, resultantes das condições climáticas, e há as criminosas, planejadas ou não

A partir de 1988, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) começou a monitorar a devastação na Amazônia com imagens de satélite. São Félix do Xingú, até 1988, tinha 100.633 km2 – Santa Catarina tem 95.346 km2. Com a criação dos municípios de Tucumã e de Ourilândia do Norte, a área de São Félix caiu para 84.213 km2. Até o ano 2.000, São Félix perdeu 7.037 km2 de florestas. Nos 20 anos seguintes, chegou a 20,4 mil km2 a menos de florestas. A devastação em São Félix, nos últimos 40 anos, começou com o garimpo, e ganhou força com a pecuária, que substituiu as florestas pelo maior pasto do mundo: o município tem hoje a maior quantidade de bois do Brasil, estimadas 2,5 milhões de cabeças. 

A Volkswagen, em 1983, tinha em sua fazenda Rio Cristalino, em São Félix do Araguaia (MT), com 142 mil ha, cerca de 50 mil ha (500 km2) com pastagens. Nessa época, ela enfrentava a reação da Natureza à devastação das florestas: a “praga” da “juquira”, vegetação que teimava em surgir após as derrubadas e queimadas e reduzia a capacidade nutritiva dos pastos. Cortada com foice e depois besuntada com agrotóxico, ainda assim a “juquira” voltava. Tentaram então herbicida em “pellets”, jogado de avião. Talvez tenha funcionado naquele ano. Mas esse sistema de devastar a Natureza para produzir alimentos é fadado ao fracasso econômico. No caso da pecuária de corte, o que se provou mais rentável é a sua combinação com árvores e agricultura. 

(*) Geógrafo, mestre em Políticas Públicas.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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