Opinião
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4 de outubro de 2022
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06:00

Não cedemos do desejo de manter a democracia (Coluna da APPOA)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Logo após o resultado das eleições de 2018, quando o obsceno, o abjeto e a pornocracia invadiram a cena pública, causando uma devastação na dignidade humana de milhões de brasileiros, uma frase de solidariedade circulava entre diversas redes: “ninguém solta a mão de ninguém”. Esse gesto de cuidado com o outro virou música, talvez pela sensibilidade de interpretar o desamparo e a desilusão que sentíamos naquele momento terrível da nossa história. 

Hoje, após o resultado das eleições do último domingo, apesar de o Lula não ter vencido no primeiro turno, faz-se imprescindível nos mantermos firmes no propósito de restabelecer a democracia e a humanidade neste país. Isso nos permite reconhecer o quanto o amor, a solidariedade e o desejo de “ninguém soltar a mão de ninguém”, consolidou-se como um dos movimentos fundamentais para resistir e tentar derrubar esse neofascismo que desgovernou o Brasil nos últimos quatro anos. Outro fator imprescindível foi a coragem das diferentes vozes que, não se deixaram calar, denunciando o descaso de uma tirania perversa responsável tanto pelo retorno da fome quanto pelas milhares de mortes ocorridas em função do descaso com a pandemia.  

Agradeço a todos que não soltaram a mão de Marielle e fizeram-se verdadeiras Antígonas diante desses tempos sombrios, não recuando do desejo por justiça, clamando pelo respeito a vida, pela consideração com os mortos, sem deixar de exigir comida na mesa, cultura, arte e inclusão social. Foi uma tarefa árdua que, desde o golpe parlamentar da presidenta Dilma, deixou-nos vigilantes pela defesa incondicional da democracia, dos direitos humanos e do estado democrático de direito.

Antígona, filha de Édipo e Jocasta, irmã de EtéoclesIsmênia e Polinices, clássica tragédia de Sófocles (441 a.C), ficou reconhecida como uma das três obras que compõem a Trilogia Tebana junto com Édipo Rei e Édipo em Colono. Depois de ter acompanhado seu pai até a morte, após ele ter sido expulso de seu reino pelos próprios filhos, ela retorna à Tebas e se defronta com a trágica luta fratricida de seus irmãos pelo trono. Segundo a história, Creonte, tio deles, ao se tornar herdeiro do trono, decreta de um lado, o direito de Etéocles ser sepultado com todas as honras, de outro lado que o cadáver de Polinices, por ser considerado um traidor, não tivesse a dignidade de ser enterrado e ficasse exposto à putrefação para ser consumido pelos abutres. 

Mesmo sabendo das consequências de morte para quem ousasse desafiar a determinação do tirano, Antígona, através de um ato simbólico, tenta enterrar o irmão com as próprias mãos e acaba sendo capturada pelos guardas do rei. Em nenhum momento, ela nega, teme, ou demonstra qualquer arrependimento de seu ato. Pelo contrário, ela não cede do desejo de prestar alguma espécie de rito fúnebres ao seu irmão, pois esse desrespeito com o morto, que busca reduzir seu corpo a carniça, o deixaria condenado a vagar sem paz. Furioso, apesar dos apelos de alguns representantes da Pólis, Creonte determina que ela seja emparedada viva por ter descumprido a sua determinação.

O psicanalista Jacques Lacan, ao abordar a ética da psicanálise, toma Antígona como paradigma da ética do desejo que não hesita de uma posição desejante capaz de sustentar as consequências de seu ato diante de um Outro tirânico. 

Como já escrevi nesta coluna, em 2019, no artigo Marielle, um sonho para despertar, de certo modo, Marielle foi uma forma de expressão contemporânea da Antígona que nos habita. Ao enfrentar os tiranos e não ceder do desejo que pudéssemos habitar um mundo mais justo e humano, ela ativou a nossa capacidade de sonhar com um futuro melhor. A luta dessa mulher preta, pobre e bissexual possibilitou que muitos pudessem reconhecer o quanto ainda estavam alienados numa lógica racista, elitista e lgbtfóbica. Marielle nos fez ver que podemos despertar, superar nossas humanidades classistas e não nos acovardarmos diante de uma passividade mórbida e complacente.

No último sábado, estive participando do seminário O escuro do nosso tempo, promovido pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre, coordenado pelos colegas Lucia Serrano Pereira, Enéas de Souza e Robson Pereira. Era o dia da véspera da votação, assim, a felicidade dos reencontros presenciais, misturava-se com a angústia e a esperança com o resultado das urnas. Eles tiveram a sabedoria de chamar a atenção para a nossa responsabilidade de “ver o escuro do seu tempo, para dali se situar, estar ocupando seu lugar na contemporaneidade, não desertando de seu tempo”. Uma bela imagem essa de não desertar de seu tempo, ousando fazer a leitura daquilo que é possível, reconhecendo, assim, a parcialidade sempre em causa aí. 

As Antígonas enfrentaram o escuro de seu tempo e resistiram as tiranias, mantendo vivo “a indestrutibilidade do desejo” de não submergir diante do opressor. De certo modo, pode-se dizer que aqueles que lutaram e lutam para não deixar morrer a democracia nesse país são, também, verdadeiras Antígonas.

É evidente que demos um passo importante neste último domingo. Porém, a luta continua, pois além de precisarmos ganhar as eleições mais importante, desde a redemocratização, encontraremos um país dividido e devastado. Precisaremos estar decididos de verdadeiramente não ceder do desejo de lutar pela democracia da vida.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos seguintes livros “Perversões: o desejo do analista em questão”. Curitiba: Editora Appris, 2019; “Ensaio sobre as pedofilias”. São Paulo: Escuta, 2021; Lacan com Hamlet e alguns outros, São Paulo: Escuta, 2022.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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