Opinião
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19 de outubro de 2022
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08:52

Bolsonarismo: uma tentativa de definição (por Marcelo Duarte)

Foto: Joana Berwanger/Su21
Foto: Joana Berwanger/Su21

Marcelo Duarte (*)

O termo bolsonarismo tem sido usado com certa frequência pela mídia e em redes sociais. Todavia, não há ainda um consenso sobre seu sentido e alcance. Este texto tenta defini-lo.

Bolsonarismo é o nome que pode se dar à síntese entre os elementos que definem a direita conservadora, a extrema-direita, o nacionalismo cristão reacionário e o pós-fascismo.

Tal síntese resulta de um processo político – que podemos chamar de movimento histórico – iniciado com o avanço eleitoral de uma pauta dita liberal ainda nas eleições de 2014, responsável, também, pelo início da instrumentalização dos ditos movimentos cívicos e de cidadania de um ano antes.

Seu segundo momento ocorreu com o golpe de 2016, quando, em uníssono, o que até então havia de mais torpe e desqualificado na política brasileira foi alçado à condição de protagonista discursivo. Atingia seu auge, aqui, a exploração discursiva do sentimento antipetista, gestado a partir dos episódios do mensalão, dos movimentos de 2013 e da então chamada operação lava-jato, cujos frutos políticos seriam colhidos no processo eleitoral seguinte.

O terceiro sinal desse processo, e também seu ápice, deu-se nas eleições de 2018, com a eleição de um projeto pós-fascista desde seu nascedouro – pautado, sobretudo, pelo discurso de ódio, pelo desprezo aos direitos humanos e pelo patriarcalismo –, responsável pela articulação entre nossa direita conservadora, nossa extrema-direita e um cristianismo que, até então, não revelara seu nacionalismo reacionário.

Tal processo aniquilou o equilíbrio de forças que havia, desde 1994 até 2014, entre uma (pseudo) socialdemocracia, representada pelo PSDB, e uma socialdemocracia inclusiva e democrática, representada pelo PT, que se ancorava num congresso formado, majoritariamente, por aquelas forças políticas e por um centro/centro-direita democrático, representado pelo PMDB, PFL e focos progressistas – hoje adesistas ao bolsonarismo.

Todo esse movimento histórico é fundamental para a compreensão da futura correlação de forças no Congresso, marcada, sobretudo, pelo avanço do bolsonarismo e pelo encolhimento da centro-direita e da direita democráticas. Sinais desse desequilíbrio também podem ser encontrados nas atuais articulações entre PP e UNIÃO, a fim de aumentar o poder de barganha, junto a Bolsonaro, do centrão, que reúne elementos do cristianismo reacionário, da direita conservadora e da extrema-direita, e, em matéria eleitoral, no eminente desaparecimento político dos liberais do NOVO, que sequer ultrapassou a cláusula de barreira, e na derrota de candidatos ligados ao MBL – todos eles, como afirmamos acima, instrumentalizados por elementos do bolsonarismo.

Daí, portanto, falarmos em síntese histórica para definirmos o conceito de bolsonarismo.

Direita conservadora

Definem ideologicamente nossa direita conservadora o agronegócio exportador, a monocultura e a pecuária extensivas, o latifúndio e a grilagem de terras. A questão ambiental é vista como entrave ao desenvolvimento, e o garimpo, a mineração e a invasão de terras indígenas como expansão racional e controle da soberania nacional frente ao avanço predatório das ONGs e dos organismos internacionais globalistas. Daí, muito provavelmente, a necessidade de integração dos povos originários à sociedade civilizada.

Na economia, o livre mercado, as privatizações, a reforma tributária, a reforma trabalhista, a reforma previdenciária e a reforma administrativa são vistas como soluções para o crescimento econômico, viabilizado pelo empreendedorismo. A educação, por sua vez, é vista como instrumento de formação de mão de obra qualificada para a indústria, comércio e serviços, e a educação superior como instrumento de formação de uma elite intelectual e política – daí a inexistência de mobilidade social.

A segurança pública deve servir como amortecimento das tensões sociais geradas pela desigualdade econômica. O fisiologismo e o clientelismo políticos, a permanência do atual pacto federativo e a contenção dos órgãos de estado encarregados da fiscalização e da investigação da atividade pública fazem parte de sua noção de Estado. Defende a invisibilização dos movimentos sociais e a desconstrução do sindicalismo pela eufemização do conceito de trabalho.

Destaca-se, ainda, a inexistência de solidariedade social – confundida, em geral, com caridade social – e a naturalização de lugares sociais. Há alta tolerância à pequena corrupção privada e ao patrimonialismo.

Extrema-direita

Ela é definida pelos conceitos de homofobia – donde, a desnecessidade de sua criminalização –, machismo, misoginia e racismo. Em segurança pública, defende sua militarização, o policiamento preditivo, a tolerância zero, o endurecimento das leis penais, o armamento da população, a repressão policial violenta e a pena de morte. Quanto à educação, defende sua militarização e disciplinamento hierárquico.

Há um discurso bastante vago sobre o mérito e contra políticas públicas reparatórias e compensatórias, vistas como estímulos à acomodação. O patriotismo é chauvinista e se cultua a tradição e o discurso supremacista branco. Há xenofobia, ojeriza à cultura popular e intolerância religiosa. A liberdade de expressão é vista como salvaguarda para discursos de ódio.

Nacionalismo cristão reacionário

O cristianismo nacionalista reacionário, ou simplesmente nacionalismo cristão, é, antes de tudo, uma ideologia política de extrema-direita.

É cristão porque reúne católicos e evangélicos – sobretudo neopentecostais, embora não dispense o pentecostalismo clássico e protestantes históricos –, é nacionalista porque se agarra à autoridade de um estado liderado por homens escolhidos e consagrados ao projeto de deus contra os liberalismos de um globalismo a serviço de um projeto comunista de dominação – lembremos, aqui, das teses de Olavo de Carvalho, incorporadas ao governo Bolsonaro sobretudo pelos ex-ministros Abraham Weintraub e Ernesto Araújo –, e é reacionário como todo fascismo: nós (os escolhidos por deus) somos melhores do que eles (a esquerda, p. ex.), os trabalhadores (aqueles que realmente se esforçam) não podem se submeter ao que dizem os intelectuais liberais (novamente a esquerda) e, sobretudo, por nosso caráter virtuoso, somos perseguidos pela falência moral daqueles que vivem fora do universo da palavra de deus (o comunismo globalista).

Daí sua auto-vitimização pela suposta imposição de pautas comunistas (a bem da verdade, meramente liberais) pelo marxismo cultural, dentre as quais se destacam (i) a ideologia de gênero, destinada a corromper a família tradicional (patriarcal, machista, misógina, heterossexual e branca) através da socialização de comportamentos contrários à ordem natural divina, e (ii) as cotas para negros, por sua vez encarregadas de premiar a ausência de esforço de elementos desiguais por natureza – portanto, inferiores –, tal como estabelecido por aquela ordem.

O apelo à semântica religiosa, como se vê, é só um dos modos pelos quais o nacionalismo cristão busca se legitimar politicamente.

Pós-fascismo

O pós-fascismo é um conceito que se desenvolve a partir da influência teórica de Nicos Poulantzas (“Fascismo e Ditadura”, “As Classes Sociais no Capitalismo de hoje”, “O Estado, o Poder, o Socialismo”, “Poder Político e Classes Sociais”). De acordo com tais concepções, o termo fascismo deve ser reservado aos fenômenos políticos europeus – Itália, Alemanha – decorrentes do estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista durante a primeira metade do século XX.

Disso não se segue, todavia, uma concepção a-histórica e não dialética do termo, mas sim que o surgimento, o reaparecimento ou a predominância de determinados elementos que caracterizaram aqueles fenômenos – patriarcalismo, misoginia, racismo, nacionalismo, liderança carismática, reacionarismo, tradicionalismo, etc. – dependem, em algum sentido, do estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Desse modo, assim como o fascismo puro teria sido uma consequência, dentre outros fatores, do estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção vigentes durante a primeira metade do século passado (expansionismo imperialista, colonialismo, I guerra mundial, nacionalismos, inexistência ou incipiência de direitos sociais como direitos fundamentais constitucionalizados), seria o pós-fascismo uma consequência do atual arranjo daquelas forças e relações, no qual predominam a financeirização e a concentração do capital.

A subserviência de Bolsonaro ao capital agroexportador e seu pouco caso à destruição ambiental – diretamente relacionada à expansão desse capital –, bem como sua política econômica, entregue a um Chicago boy, seriam exemplos desse atual arranjo.

Nesse sentido, o pós-fascismo à brasileira pode ser caracterizado como um movimento histórico decorrente do ressurgimento de elementos definidores do fascismo clássico condicionados pelo atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção inerentes ao modo de produção capitalista.

O termo bolsonarismo sintetiza todos os elementos definidores das noções de direita conservadora, extrema-direita, nacionalismo cristão reacionário e pós-fascismo.

Desse modo, é possível que um político integrante da direita conservadora não seja definido pelos elementos que caracterizam o nacionalismo cristão, mas é impossível que um bolsonarista não reúna todos os elementos definidores daquelas noções.

Sim, é exatamente o que você está pensando: o bolsonarismo não é sintoma de nossa decadência política, mas sim a causa de termos chegado a seu ponto mais baixo.

Nota 

[1] Há uma disputa teórica em torno do sentido em que o termo fascismo pode ser usado a fim de caracterizar o bolsonarismo. Para alguns, o bolsonarismo é um fascismo puro. Como se sabe, a noção clássica de fascismo envolve, basicamente, um governo autocrático representado por um ditador e a subordinação da individualidade de origem liberal às ideias de nação – nacionalismo – e raça – racismo. Valores liberais – gênero, sexualidade, feminismo, etc. – são rejeitados em nome dos tradicionais – família patriarcal branca e cristã – e cultua-se uma personalidade predestinada que os encarna e que representa a antipolítica – um líder carismático e viril. Todavia, apesar da proximidade do bolsonarismo com tais características, faltam-lhe outras que, por marcação histórica – casos, sobretudo, do imperialismo expansionista e do unipartidarismo –, pertencem aos fenômenos políticos da Itália e Alemanha. Daí, para alguns, o bolsonarismo se tratar de um protofascismo – ou seja, reunir determinados elementos do fascismo clássico numa espécie de transição para aqueles capazes de identificá-lo como tal. Outros, ainda, preferem o termo pós-fascismo. O termo neofascismo, por sua vez, concorre com o pós-fascismo, mas dele se diferencia por não envolver uma análise da noção de fascismo a partir do estado e do modo de produção capitalista. No neofascismo, o nacionalismo assume feições chauvinistas e não há incompatibilidade entre autoritarismo e eleições livres, uma vez que o regime doutrina uma massa de cidadãos contra inimigos internos – os antipetistas contra os petistas, p. ex.

Umberto Eco e Jason Stanley, respectivamente em “O Fascismo Eterno” e “Como funciona o Fascismo”, apontam características comuns entre os fascismos do início do século XX que os transcenderiam e poderiam identificar fenômenos políticos contemporâneos. Para Eco, a presença de qualquer uma delas seria suficiente para “que se forme uma nebulosa fascista” (Rio de Janeiro, Record, 2020, p. 44). Segundo Stanley, “cada mecanismo da política fascista tende a se basear em outros”, e seu maior perigo reside na “maneira específica como ela desumaniza segmentos da população” (Porto Alegre, L&PM, 2020, pp. 14-17)

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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