Opinião
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11 de outubro de 2022
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14:21

A política paliativa (por Jorge Barcellos)

 Foto: Amazônia Real/Fotos Públicas
Foto: Amazônia Real/Fotos Públicas

Jorge Barcellos (*)

Um dos argumentos centrais para a luta política no segundo turno a ser usado pelo PT é apontar a relação de Jair Bolsonaro com a morte de milhares de pessoas durante a pandemia do coronavírus. Byung Chul Han, em sua obra “A sociedade paliativa” (Vozes, 2022), afirma que a relação com a dor revela o tipo de sociedade ou agente político “cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso se deixe a dor apenas a cargo da medicina, deixamos escapar seu caráter de signo”, diz Han. 

Para Han, vivemos num universo algofóbico, onde a angústia generalizada nos leva a anestesia permanente expresso no desejo de se evitar a dor, que se prolonga no social “conflitos e controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas tem cada vez mais espaço. A algofobia se estende também à política. A coação à conformidade e a pressão por consenso crescem. A política se orienta em uma zona de paliativa e perde toda a vitalidade”. Essa não é exatamente a descrição da atitude do presidente Jair Bolsonaro em relação a morte de milhares de pessoas pelo coronavírus?

Não se trata, portanto, como afirma Jelson Oliveira, em “Bolsonaro e a pandemia: indiferença como forma de governo” (Le Monde Diplomatique Brasil, 8/2/2021), de que Bolsonaro ofende o princípio básico da vida pública, a defesa do interesse e o compromisso com o bem do próximo, principalmente os mais vulneráveis. A proteção e a defesa social, na verdade, não foram substituídas por indiferença, no desleixo com o qual assumiu seu papel de garantir a vida dos cidadãos, o bolsonarismo substituiu responsabilidade por essa analsageia política que o transforma no primeiro governo paliativo da história. 

Não são paliativas as piadas enfadonhas, os gestos inertes diante da pandemia, seu sorriso insosso, que, como afirma Oliveira “torna o estado brasileiro insensível à dor de seus cidadãos”? Com Bolsonaro inaugura-se a política paliativa cuja ideia mestra é a afirmação de que, frente a pandemia e suas mortes, não há alternativa, é simplesmente aceitá-las como consequência da existência. Essa entrega do sistema político aos efeitos do vírus, sua compulsão a seus efeitos, anuncia aquilo que Han chama de pós-democracia, que a democracia paliativa representa. Para Jair Bolsonaro, cabe evitar a confrontação da verdade frente as mortes provocadas pelo coronavírus, ele não é capaz de visão ou da reforma da sua atitude de forma eficaz “ela prefere tomar analgésicos de curto efeito que apenas aceleram disfunções e rejeições. A política paliativa não tem nenhuma coragem para a dor. Desse modo, o igual avança”, finaliza Han. 

Assim, o sentido da política paliativa do governo Jair Bolsonaro não é o desdém como a nova regra que solapa as bases da política porque baseada na indiferença. A sutileza está, ao contrário, em tratar de forma paliativa a dor alheia. Não é a visão piorada da guerra de todos contra todos, a indiferença à dor de todos provocada pela guerra contra o vírus que está em questão? Não é a hostilidade de sua figura às vítimas, e o que é mais grave, essa positividade política que busca se isentar de compartilhar a dor com seus semelhantes? A política bolsonarista é uma política da positividade porque se funda no base da algofobia atual. É uma mudança de paradigma, assinala Han, já que a política do sofrimento (estar junto às vítimas, visitar hospitais, etc.) é substituída por uma política positiva (deixe os mortos aos mortos e pense nos vivos!), uma política resumida no “e daí” pronunciado pelo presidente. O efeito do “e daí” é anular imediatamente o pensamento sobre os mortos “submeter a dor a própria lógica do desempenho”. É mais do que a recusa do princípio da precaução de que fala Oliveira porque não se trata de uma forma do cuidado, de proteção, mas, ao contrário, se trata de outra forma da exploração neoliberal, o que é ainda mais grave, pois mostra que a razão do Estado não é proteger seus pares, mas proteger o capital. 

Essas distinções baseadas nos detalhes são muito importantes porque se tem falado muito do projeto necropolítico de Jair Bolsonaro expresso em suas falas frente às vítimas da covid e menos do sentido profundo que produzem a ausência dos gestos de solidariedade e pesar que deve ter um governante com os seus. A denúncia da esquerda, nesse sentido, deve ser não apenas a da ausência de empatia para assumir suas responsabilidades, mas a condução à perversidade de criação de novos cidadãos sem vontade de assumir a dor com os mais próximos. Não é exatamente assim que vemos agirem seus correligionários, com mensagens nas redes sociais incentivando não apenas o ódio, mas a morte de seus semelhantes os “mais pobres”, “desaventurados”? Essas declarações agravam o cenário político, pois a política positiva contribui com a ideologia neoliberal da resiliência que diz que o trauma deve servir para aumento do desempenho. Não é esse o sentido do êxtase de Jair Bolsonaro com a retomada da economia, quando ele diz que “fala-se até mesmo de um crescimento pós-traumático?” A política paliativa de Jair Bolsonaro é essa estratégia de poder que tem como objetivo formar, a partir dos cidadãos, um sujeito de desempenho permanentemente feliz e insensível a dor. 

É uma forma diferente, portanto, de celebrar o egoísmo, pois não se trata de uma busca pelo prazer indo navegar de jet ski nas praias ironizando às vítimas do coronavírus, como afirma Oliveira. Não se trata de um gesto fútil apegado ao presente sem utilidade e traduzida em frases como “comamos e bebamos, porque logo morreremos”, “tô saindo e tô vivendo, tem gente que não sai e tá morrendo” ou a infame “me entuba, porra”, gritada pelo presidente durante o réveillon. Se trata de uma celebração do sujeito do desempenho como modelo permanente, que coloca a todos nós, da mesma forma, diante da crise civilizatória. Não é a indiferença que é corrosiva, é a dimensão paliativa da política que é. Não se trata de dizer que a indiferença nega os valores da racionalidade, alteridade e tolerância, princípios básicos da vida em comum; se trata de dizer que é preciso fundar uma nova sociedade baseada em valores que prometem o bem estar capitalista a quem recusar a dor. Não é exatamente esse o princípio de base da recente expansão da indústria farmacológica de opióides que tem nos Estados Unidos seu modelo principal?  A política paliativa de Jair Bolsonaro está alinhada a essa ideologia artificial do bem-estar, a mesma que está na base tanto da positividade neoliberal quanto da indústria de medicamente, pois esta também era fundada originalmente numa medicina paliativa que passou a ser usada por pessoas saudáveis. Han cita o especialista em dor americano David B. Morris que dizia “os americanos de hoje pertencem, provavelmente, a primeira geração da Terra que veem uma existência livre de dor como um direito constitucional. Dores são um escândalo”.   

Negando a dor dos familiares das vítimas, Jair Bolsonaro traduziu em frases e gestos a política paliativa. Essa política estava presente também na relação com causas abjetas que vieram a emergir no atual governo, como elogio da tortura, miséria, violência doméstica, estupro, homofobia e xenofobia, todas situações que provocam dor em suas vítimas e seus familiares. Por isso, o modo de manifestação da rejeição à dor alheia apontado por Oliveira é correto: “Ri-se dos mortos que ainda esfriam nos hospitais, ri-se das mulheres estupradas, das florestas queimadas, das milhões de toras amazônicas transportadas rio abaixo, das vítimas das balas perdidas e de cada um dos que morrem de Covid-19. E enquanto isso, dá-se de ombros, veste-se alguma camiseta com lema bíblico, ganha-se benção de pastores e brinda-se com jogadores de futebol ou empresários da cafonice, que vivem a serviço da desinformação e do desprezo pela dor alheia. “

A definição de sociedade paliativa de Han, portanto, é a imagem real da política do governo Jair Bolsonaro: “a sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho. A dor é vista como um sinal de fraqueza. Ela é algo que deve ser ocultado ou ser eliminado por meio da otimização. Ela não é compatível com o desempenho. A passividade do sofrer não tem lugar na sociedade ativa dominada pelo poder. Hoje se remove à dor qualquer possibilidade de expressão. Ela é, além disso, condenada a calar-se. A sociedade paliativa não permite avivar, verbalizar a dor em uma paixão”. Não é exatamente dessa forma que funciona o governo Jair Bolsonaro? Quando o presidente fala com desdém da dor da morte alheia, o que ele reforça é a ideia de que ela é um sinal de fraqueza e assim, ele elimina a expressão da dor da morte da mesma maneira, obrigando uma nação a calar a sua dor. E sem verbalizá-la, ele cria uma angústia sem solução que não é resolvida pelas redes sociais, onde se localiza a sociedade do curtir.

É que Han critica a mania de curtição que está por detrás das redes sociais porque ela é outra forma de analgésico social. Na política, a curtição está presente nas redes de um e outro candidato reforçando a ideia de que nada deve provocar dor. Por isso, na reta final de campanha do candidato de esquerda, é preciso fazer a denúncia desse mecanismo, fazer a crítica do desempenho em defesa do cuidado com a boa vida “a sociedade dominada pela histeria é uma sociedade dos mortos-vivos”, diz Han. A positividade, no entanto, tem efeitos nefastos, já que acelera a circulação de informação e capital, exatamente como Bolsonaro faz com suas redes e sua relação com lideranças evangélicas. E, nesse caminho, o bolsonarismo desfaz fronteiras e ultrapassa os limites. A conclusão de Han, que serve para o a política atual, é a de que a pandemia deixou como herança uma alteração no modo de relacionamento da política com seus cidadãos, o desenvolvimento de um comportamento imunológico no social no qual pobres, diversos grupos de identidade, entre outros, são tratados como inimigos, exatamente como o vírus trata o organismo vivo “a pandemia não coloca a vista nenhuma outra forma de vida. Na guerra contra o vírus, a vida é, mais do que nunca, uma sobrevivência”. O que nos leva a pergunta: se for eleito Bolsonaro (bate na madeira), sobreviremos?

(*) Doutor em Educação/UFRGS, autor de “O êxtase neoliberal” (Editora Clube dos Autores, 2022)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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