Opinião
|
4 de setembro de 2022
|
20:47

Sobre a gramática do câncer: ‘faz tudo o que tu precisa fazer’ (por Marco Weissheimer)

Por
Marco Weissheimer
[email protected]
O nome da doença segue sendo tratado como uma
O nome da doença segue sendo tratado como uma "palavra maldita" a ser evitada (Pixabay)

Marco Weissheimer (*)

“Marco, não deixa de fazer nada. Faz tudo o que tu precisa fazer”. O doutor Gerson Junqueira Jr. nem me deixou terminar a pergunta que eu começara a fazer e já antecipou a resposta. A pergunta que, naquele momento, parecia longe das prioridades postas pela notícia que acabara de receber, era se eu poderia continuar praticando Yoga. A notícia era a confirmação do diagnóstico de recidiva do melanoma que havia tido em 2012, com a presença de ao menos um foco de metástase em um linfonodo no mesentério e umas manchas suspeitas no pulmão. Era a tarde do dia 27 de abril de 2022. A antessala do consultório estava lotada de pacientes e ele não podia se deter muito nas explicações. “Não vou dourar a pílula”, resumiu, me passando uma solicitação que eu deveria levar para o Laboratório de Patologia do Hospital Mãe de Deus, para a realização de uma pesquisa BRAF no material do melanoma extraído em 2012, armazenado em um bloco de parafina. Essa pesquisa verifica a presença ou não da mutação do gene BRAF em melanoma metastático (essa pesquisa, feita no final de junho, apontou a ausência dessa mutação).

O realismo duro do dr. Gerson Junqueira soava quase como uma sentença de morte anunciada. Faz tudo o que precisa fazer, pois o fim está próximo. Esse era, à primeira vista, o conteúdo daquela pílula cinzenta. Após o choque inicial da afirmação, um outro sentido possível da mesma surgiu em minha mente. Era um sentido de cura, não de morte. “Não deixa de fazer nada que seja importante pra ti fazer” significava também dizer que, apesar de ser um quadro bastante delicado, para usar um eufemismo, eu precisava me concentrar em fazer tudo o que era importante fazer naquela situação. Como o Yoga, por exemplo. Yoga não cura câncer, como diz Lois Steinberg (professora e praticante de Yoga), na abertura de seu livro “Iyengar Yoga Cancer Book”, mas pode ajudar muito no enfrentamento de todo o processo de tratamento, como no enfrentamento da vida em geral, aliás, o que já não é pouca coisa.

Algumas horas depois da confirmação do diagnóstico, esse segundo sentido assumiu a condição de um princípio que deveria, não apenas orientar a minha conduta no tratamento do melanoma que viria, mas na minha vida como um todo (no trabalho, na relação com o corpo e com a mente, na alimentação, na relação com as outras pessoas e por aí vai). Ele se tornou um chamado para mudar de vida, que dizia: suas chances serão tanto maiores quanto mais tu conseguir dedicar tua vida a coisas que são realmente importantes, que não vão te adoecer mais, pelo contrário, vão te conduzir para o caminho da cura. Logo percebi que essa regra deveria valer para a vida em geral, e não só para situações de emergência como essa. Quanto tempo perdemos, ao longo da vida, fazendo coisas que, de fato, “não precisamos fazer” e deixando de fazer outras que “deveríamos fazer”. Vivendo assim, podemos estar aparentemente sem nenhuma doença, mas será que estamos mesmo? Os processos de adoecimento interno podem ser silenciosos e sorrateiros.

O exemplo de Shirly Ecker

Apesar dessa disposição de, diante da ameaça da morte, “iniciar vida nova”, os dias seguintes foram de atordoamento. É como se a vida tivesse ficado em suspenso. Não lembro direito como cheguei até a ele, mas um vídeo publicado no Youtube me ajudou a retomar o foco e começar a fazer “tudo o que precisava fazer”. Intitulado “Cancer and Iyengar Yoga”, o minidocumentário de 16 minutos conta a história da israelense Shirly Ecker, que conta como o câncer tornou-se parte de sua vida e como ela aprendeu a conviver com isso,a reinventar-se, a sobreviver e, de quebra, a desenvolver uma prática terapêutica de Yoga para pacientes de quimioterapia e radioterapia. A descrição do vídeo traz a seguinte frase de Khalil Gibran: “Sua vida é determinada não tanto pelo que a vida lhe traz como pela atitude que você traz à vida; não tanto pelo que acontece com você como pela maneira, sua mente olha para o que acontece”. A frase é uma ótima descrição da história de vida de Shirly e da maneira como ela decidiu enfrentar a presença do câncer na vida dela.

“Um câncer é apenas um câncer e pode ser um ótimo professor. Ele te exige um novo começo porque você é obrigado a encontrar coisas novas para te manter junto com os teus e pela vida”, diz. Ela teve seu primeiro câncer aos 25 anos e, desde então, eles “se foram e voltaram, se foram e voltaram”. “Eu nasci em 1960 e vivi mais anos da vida com câncer do que sem ele. Ele se tornou, de fato, um parceiro na minha vida. De acordo com meus médicos, eu já devia estar morta há muitos anos, mas estou aqui, sentada, sorrindo e aproveitando a vida. E quero compartilhar a minha experiência e o conhecimento que obtive com ela, que podem ajudar pessoas que tem câncer ou que terão no futuro, pois se tornou uma doença da vida moderna”. Shirly conta que obteve esse conhecimento do indiano B. K. S. Iyengar, que foi professor de Yoga dela por 27 anos. Ela aproveitou esses conhecimentos como terapia complementar para mitigar os efeitos da quimioterapia que fez por muitos anos

Shirly conta ainda que, de fato, o diagnóstico de câncer pode soar como uma sentença de morte, mas a evolução do tratamento vai depender, entre outras coisas, da maneira como a pessoa se relaciona com isso. “Quando você descobre que tem câncer, tem que achar uma maneira de viver com ele. Em geral as pessoas dizem que você precisa lutar contra o câncer. Mas se você assumir essa postura de “lutar” contra ele, provavelmente vai perder, porque essa “luta” vai consumir muita energia de que vai precisar. Você vai perder muita energia no tratamento e precisa começar a fazer coisas que deem um “up” na tua vida. Toda vez que tive um novo câncer, eu encontrei uma nova coisa que me fez sentir bem, que me deu energia, que me fez sentir um “wow” (“uau” numa tradução livre). Quando você tem câncer, o “uau” fica muito baixo”. Você precisa mudar de vida, fazer coisas novas, para reencontrá-lo. “Toda vez que tive um câncer, eu encontrei algo novo que passou a fazer parte da minha vida e não fazia antes”.

Ela conta, bem humorada, que, quando seus médicos em Israel viram que ela ainda estava viva, perguntaram: “O que está acontecendo? Ela ainda está aqui”. “Eles me disseram: Olha, Shirly, nós não sabemos o que você está fazendo, mas queremos que comece a fazer isso no nosso hospital (Tel HaShomer Hospital)”, referindo-se ao uso terapêutico do yoga com pacientes de quimioterapia.  O ponto da Shirly (que nem sei se está viva ainda, pois esse vídeo já tem alguns anos) não é que o Yoga “cura” câncer ou que ela desenvolveu uma fórmula mágica para enfrentar a doença, mas sim que o modo como você encara o que acontece com o teu corpo e a tua vida pode fazer toda diferença, não apenas no caso do câncer, mas da vida em geral. No meu caso, esse novo “up”, “wow” ou “uau” também teve e tem muito a ver com o Yoga, mas não apenas com ele. O sentido em que Shirly fala que o câncer pode ser um professor reside no convite proposto pelo nosso próprio corpo a reinventar à vida, sair do piloto automático assentado em uma suposta zona de conforto que pode estar apenas semeando desconfortos futuros.

“A vida do câncer é um resumo da vida do corpo”

Em seu maravilhoso livro, “O Imperador de Todos os Males – Uma biografia do câncer” (editado no Brasil pela Companhia das Letras), o médico oncologista Siddharta Mukherjee nos lembra que o câncer é uma moléstia da vida moderna que, com o prolongamento da expectativa média de vida, foi levado para o primeiro plano. Muitos de nós já temos ou teremos câncer e isso não é uma sentença de morte ou uma maldição que deve ser tratada em segredo, evitando-se inclusive o uso da palavra. “A vida do câncer é um resumo da vida do corpo, sua existência é um espelho patológico da nossa. Mesmo em seu núcleo molecular inato, as células cancerosas são cópias de nós mesmos – dotadas de capacidade de sobrevivência, hiperativas, fragmentárias, fecundas e inventivas”, escreve Mukherjee. 

Daí outra reflexão importante de Shirly Ecker sobre não encarar o tratamento como uma “guerra”, mas sim como um chamado a encontrar um novo “uau” na vida, que possa banhar todo o corpo e a mente de energia restaurativa e força vital. Tudo isso não é receita de bolo e envolve escolhas, é claro. Foi assim que escolhi ler a recomendação do dr. Gerson Junqueira lá em abril: faz tudo o que tu precisa fazer. E o que mais precisei, a partir dali, foi encontrar esse novo “uau” na vida. É nesta caminhada que estamos e compartilhá-la com palavras é uma forma de dizer também que não há doença maldita nem sentença de morte, mas sim a vida querendo viver.

(*) Jornalista, repórter e editor do Sul21.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora