Opinião
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16 de setembro de 2022
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14:35

Privatização da água: para pensar o futuro você prefere fatos ou ideologia? (por Tarson Núñez)

Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini
Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini

Tarson Núñez (*)

O estado do Rio Grande do Sul já faz tempo vem debatendo um tema da maior importância, a privatização da sua companhia estadual de saneamento. É uma decisão que terá um impacto enorme para o futuro de todos os cidadãos, mas a discussão pública em torno do assunto tem sido precária e muito mal informada. Nos meios de comunicação em geral ouvimos apenas as posições favoráveis, como se houvesse um consenso natural e inevitável acerca deste assunto.

Os argumentos a favor se baseiam em um único pressuposto básico. A convicção de que o Estado não tem mais capacidade de prover serviços de qualidade e de que a entrega do saneamento para o setor privado resolverá os problemas garantindo acesso de todos os gaúchos a estes serviços. Reparem que, para além desta afirmação genérica, não se apresenta ao debate público nenhuma evidência real de que a entrega deste serviço ao setor privado pode realmente melhorar a situação do saneamento.

Mas se ao invés da superficialidade da cobertura jornalística a gente tentasse simplesmente buscar as evidências empíricas acerca do tema? Não seria melhor, apenas por um momento, deixar de lado os modelos teóricos dos tecnocratas privatistas e tentar olhar o que acontece pelo mundo? A experiência prática é o grande critério que deveria nortear a discussão das políticas públicas. A vida real é que pode mostrar quais os modelos mais eficientes. E no campo do saneamento há uma enorme experiência no mundo inteiro nos últimos 30 ou 40 anos.

A partir do final dos anos 80, com a hegemonia mundial do projeto neoliberal, centenas, milhares de experiências de privatização de serviços públicos aconteceram no mundo inteiro. Na Europa e na América do Norte, muitos serviços de saneamento e abastecimento de água foram entregues à iniciativa privada. Então, um critério bem simples poderia ser utilizado para discutir o tema da privatização do saneamento. Deu certo? É só olhar o que aconteceu na vida real e avaliar se a privatização realmente melhora a vida das pessoas.

E nem precisa pesquisar muito, com meia dúzia de clicks em buscadores na internet já é possível encontrar muita informação que poderia qualificar o debate sobre o futuro da nossa empresa pública de águas. Esta disponibilidade de informações torna ainda mais evidente a falta de vontade política nos nossos meios de comunicação em levar informação consistente aos cidadãos. Vou destacar aqui três exemplos de casos que deveriam fazer parte desta discussão.

O primeiro é um estudo realizado em 2017 pelo Transnational Institute. O TNI é uma instituição de mais de quarenta anos, surgida nos Estados Unidos e hoje baseada na Holanda. Pois este instituto realizou um amplo estudo, coordenado por professores das Universidades de Greenwich e Cambridge na Inglaterra, Wuppertall, na Alemanha e Cornell, nos Estados Unidos e com a participação de um grupo de 15 pesquisadores que realizaram o balanço mais completo dos resultados das privatizações de serviços públicos no hemisfério norte. Este estudo passou em branco pela nossa mídia corporativa, que prefere dar destaque às estimativas cor-de-rosa do setor privado.

E qual foi o resultado? O estudo mostra, de forma contundente, que essas privatizações foram um completo fracasso. Um fracasso tão grande que resultou em um amplo processo de reestatizações de serviços públicos pelo mundo afora. Entre 2000 e 2017 foram mais de 1600 casos de reversão de privatizações, por conta da má qualidade e do alto preço dos serviços. No caso dos serviços de água foram 267 casos, em países como a França (106), os Estados Unidos (63), a Espanha (27) entre tantos outros. E o estudo mostra, claramente, que este processo de reestatização não ocorreu por motivos de natureza ideológica, mas em função da queda da qualidade e do crescimento dos preços dos serviços. Foi pura e simplesmente a profunda insatisfação do público frente ao fracasso da gestão privada que impôs aos governos a retomada dos serviços. Este estudo pode ser facilmente acessado neste endereço.  

Outro exemplo, mais recente e radical, diretamente ligado ao tema da água e do saneamento, vem da Inglaterra. Desde os tempos de Margareth Thatcher este país tem sido um laboratório das políticas neoliberais, que sempre foi apresentado como um exemplo para o mundo. Em 1989, através do Water Act, o governo privatizou os serviços de água naquele país. Mais de 30 anos depois o país vem assistindo a uma crise ambiental sem precedentes, causada pelo impacto da ineficiência das companhias de água e saneamento. Os rios da Inglaterra vêm sendo contaminados por descargas massivas de esgoto não tratado.

Segundo dados da Agência Ambiental daquele país, houve mais de 400.000 descargas de esgoto in-natura nos rios ingleses apenas em 2020. No litoral do país mais de 10% dos dias do verão daquele ano foram perdidos por conta dos derramamentos de esgoto, que contaminaram os rios e as praias no país. Praticamente todos os rios do país apresentam problemas de contaminação por esgoto em 2021. 

As empresas privadas sofreram multas de mais de 400 milhões de libras entre 2020 e 2021 por conta desta contaminação. No entanto, ainda que as multas pareçam altas, não afetam a lucratividade das empresas. Estas companhias vêm distribuindo em média mais de 2 bilhões de libras por ano em dividendos para os seus acionistas. Segundo o jornal The Guardian, entre 1991 e 2019 as empresas distribuíram mais de 57 bilhões de libras aos acionistas, quase metade da soma do que foi gasto na manutenção da qualidade do serviço. Aparentemente nos seus cálculos, portanto, fica mais barato para as companhias pagar as multas pelos derramamentos do que investir na melhoria dos encanamentos e unidades de tratamento

O músico Feargall Sharkey, vocalista da banda punk Undertones, que se tornou um ativista das questões ambientais, denunciou recentemente que três meses depois de ser multada em 90 milhões de libras por descarregar esgoto nos rios e menos de 12 horas de uma votação no parlamento que abordava o tema do saneamento, a companhia Southern Water estava lançando esgoto não tratado em 60 pontos da costa sul da Inglaterra. Todos estes casos são exemplos do descompromisso ambiental das companhias privadas.

E o problema não se resume à crise ambiental gerada pela má qualidade dos serviços, o custo também se elevou. Pesquisadores da Universidade de Greenwich estimam que os contribuintes ingleses pagaram 2,3 bilhões de libras por ano a mais em contas de água do que teriam pago se as companhias tivessem se mantido nas mãos do poder público. A situação é tão escandalosa que até mesmo o Financial Times, porta-voz do conservadorismo liberal chegou a chamar o setor de saneamento privado daquele país um “roubo organizado”.

O terceiro caso, ainda mais emblemático, é o da remunicipalização dos serviços de água de Paris, capital da França. Um estudo publicado este ano, escrito pelo professor da City University de Nova York, Michael Menser e por Anne Le Strat, que foi vice-prefeita da cidade, conta a história. Historicamente o setor de águas na França sempre foi dominado pelo setor privado. Grandes empresas como a Veolia (criada em 1853 como Generale des Eaux) e Suez (antes Lyonaise des Eaux, 1880) atuavam o mercado através de contratos obtidos sem licitação ou transparência. Não existia na França qualquer regulamentação acerca deste tipo de serviços, uma situação que se agravou no final do século passado com o predomínio da ideologia neoliberal. As políticas de descentralização do estado francês implementadas nos anos 80, que ampliaram as atribuições dos governos locais aceleraram a privatização do setor. 

Em 1984 o prefeito de Paris delegou a gestão da água da cidade, que foi dividida entre três operadores. A distribuição e a cobrança foram divididas entre dois operadores privados subsidiárias da Suez e da Veolia, enquanto a captação e tratamento ficavam por conta de uma empresa mista, uma associação da prefeitura com os dois entes privados, a Sociedade Anônima de Gestão das Águas de Paris (SAGEP). Os contratos que regiam o setor não detalhavam as obrigações das companhias, mas eram muito estritos no que dizia respeito à cobrança, o que levou a um crescimento acentuado dos preços. Os parceiros privados ficavam com a parte mais lucrativa dos serviços, investindo muito pouco na rede de distribuição. Os principais investimentos ficavam por conta da SAGEP, que garantia a infraestrutura (aquedutos, unidades de tratamento, reservatórios), enquanto os parceiros privados ficavam com a maior parte dos lucros. 

Com a vitória da coalizão de uma coalizão de esquerda (socialistas, verdes e comunistas) nas eleições de 2001 este quadro começa a mudar. A orientação do novo governo era de gerir a água como um bem público, garantindo uma gestão democrática e transparente focada na sustentabilidade. Num primeiro momento a prefeitura tentou negociar com os parceiros privados, ao mesmo tempo em que promovia estudos sobre o tema e realizava um conjunto de consultas públicas e debates com os funcionários da SAGEP. Mas o tema não avançou.

Na eleição seguinte, em 2008, a coalizão da esquerda se comprometeu com a remunicipalização da água, e não renovou os contratos com a Suez e a Veolia, que eram os operadores privados. Com a municipalização, ao contrário do sistema anterior, todo o lucro da empresa foi convertido em investimentos. Apenas no primeiro ano esta prática resultou em US$ 40 milhões aplicados em melhorias nos serviços de abastecimento de água da cidade. A nova empresa municipal, Águas de Paris, provê água de qualidade e o preço pago pelos consumidores reflete de forma transparente o custo do produto. E mais do que isto, a gestão da companhia é realizada por um comitê que inclui além do governo municipal, representantes da oposição, da sociedade civil e dos servidores da empresa, garantindo transparência e gestão democrática.

Em 2017, Águas de Paris recebeu o prêmio das Nações Unidas na categoria “promoção da transparência, accountability e integridade nos serviços públicos”, um reconhecimento do sucesso da experiência. Este seria um bom modelo a ser seguido. Assim como os casos da remunicipalização dos serviços de água de Berlim, de Grenoble e de Terrazas, a segunda maior cidade da Catalunha. É a partir de fatos como estes que se deveria fazer um debate racional acerca das decisões que estão sendo tomadas sobre o nosso futuro. É realmente uma pena que uma discussão tão importante como esta sobre a gestão da água e do saneamento no Rio Grande do Sul siga sendo feito apenas com base em convicções ideológicas.

(*) Doutor em Ciência Política pela UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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