Opinião
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30 de setembro de 2022
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14:35

Perspectivar (por Cassio Machado)

Pandemia engendrou convergência de crises,(Pixabay)
Pandemia engendrou convergência de crises,(Pixabay)

Cassio Machado (*)

Benditos são os dias em que aprendemos, quando a surpresa do novo e do inesperado nos invade. Não somos coaches ou influenciadores digitais, nem gladiadores do cotidiano, porque a vida não é “instagramável”. Assim, benditos são os dias em que aprendemos, que algo aflora no concreto da calçada e presenciamos o primeiro despencar do outono. 

Ilana Katz Zagury é o nome da professora da vez. Em uma privilegiada oportunidade de formação voltada a profissionais de saúde sobre atenção psicossocial na pandemia de Covid-9, organizada pela Fiocruz, Zagury disparou: “A pandemia nos tirou a capacidade de futurar”.

A ocasião permitiu cogitar: malditos são os verbos inventados. Mas foi breve o engano, e não apenas porque futurar não pode ser considerado uma invenção recente, muito menos atribuída à professora Zagury. Os dicionários já o descrevem como verbo transitivo direto ligado ao ato de imaginar o que ainda não aconteceu; antever, prenunciar. Porém, o engano se desfaz muito antes do conhecimento dessas questões técnicas, pois ele é desconstruído paulatinamente, palavra a palavra, quando Zagury se refere, em sua explicação, à nossa perda da capacidade de futurar durante a pandemia e a sua importância para a saúde mental. 

A relevância de imaginar o que ainda não aconteceu não está relacionada apenas a questões biológicas direcionadas à manutenção da vida de nossos corpos, como, por exemplo, saber onde encontrar alimento e proteção, antever as estações para cultivar a terra e se preparar para as intempéries. Imaginar o que ainda não aconteceu está intrinsecamente relacionado aos nossos sonhos e esperanças.

Perder a capacidade de futurar é subtrair o ânimo dos invólucros que habitamos. Infelizmente, outras experiências na história da humanidade já atestaram que sim, é possível destituir os corpos dos afetos que os movem, do holocausto na Alemanha às bombas no Japão, da tragédia em Pripyat ao genocídio em Ruanda, do terremoto no Haiti ao maremoto na Indonésia. Muito possivelmente esses eventos afetaram os envolvidos, assim como a pandemia afetou e afeta aqueles que não a negam. Nesse sentido, Zagury aponta para o que nos foi usurpado, a fim de que, assim, possamos identificar essa falta, fazendo a seguinte pergunta: o que pode ser feito para voltarmos a futurar?

(*) Psicólogo, atua no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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