Opinião
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25 de setembro de 2022
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06:34

As elites rastaqueras (por Carlos Frederico Guazzelli)

As elites rastaqueras (por Carlos Frederico Guazzelli)
As elites rastaqueras (por Carlos Frederico Guazzelli)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Este artigo é a versão resumida de ensaio ainda inédito, de mesmo nome

O significado vernacular da palavra francesa “élite”, segundo o Dicionário “Le Robert, Micropoche” (Paris, 2013), em livre tradução, é o de: “…1. conjunto das pessoas mais notáveis de um grupo, uma comunidade (ex., do exército, da universidade, etc); 2…as pessoas que, pelo seu valor, ocupam as primeiras posições…”.

Com este sentido, o termo passou para outras línguas, entre as quais a nossa. E foi e é empregado, ainda hoje, nas Ciências Sociais, e também pelo senso comum vigente, para designar tanto as classes dominantes quanto as camadas dirigentes da sociedade.

Na Sociologia Política contemporânea, na passagem do século XIX ao XX, surgiu inicialmente na Itália, e logo ganhou prestígio e adoção em outros países ocidentais, a chamada teoria das elites que, nas palavras de Norberto Bobbio, em seu clássico “Dicionário de Política”, consiste na concepção “ …segundo a qual, em toda sociedade, existe, sempre e apenas, uma minoria que, por várias formas, é detentora do poder, em contraponto a uma maioria que dele está privada…” (4ª edição, Ed. Universidade de Brasília, 1992, Vol. 1, página 385). 

Ainda conforme Bobbio, a originalidade de seus formuladores – os italianos Gaetano Mosca e Wilfredo Pareto, aos quais logo se somou o alemão Roberto Michels – não reside na constatação da existência de minoria, ou minorias dominantes, em oposição à ampla maioria de dominados, fenômeno antes destacado por muitos outros pensadores, como Saint-Simon, Taine e Marx-Engels. A pretensão inovadora da teoria elitista consistiria em que este fato – a existência em todas as sociedades de um pequeno grupo minoritário que, em seu favor, governa a ampla maioria – seria constitutivo da sociedade política.

O grande mestre piemontês observa ainda que, embora se tenha proposto como a primeira teoria pretensamente científica no campo da Política, a teoria das elites trazia “…uma fortíssima carga polêmica antidemocrática e anti-socialista, que refletia bem o ‘grande medo’ das classes dirigentes dos países onde os conflitos sociais eram ou estavam para se tornar intensos…” (op. cit, página 386, aspas no original). 

Pode-se acrescentar às observações do emérito professor de Turim, que a experiência histórica revela que a marca autoritária, por ele corretamente identificada na teoria em questão, na verdade acompanha, de forma indelével, o comportamento e os propósitos das ditas elites – aqui consideradas na sua acepção autêntica, de classes dominantes, e não somente as instituições e corporações a seu serviço. Incapazes de obscurecer seu papel hegemônico na constituição dos poderes, formais e informais, da estrutura social, os detentores da riqueza – a saber, nos tempos contemporâneos, as burguesias industrial, comercial e financeira, além do patriciado rural – apresentam-se tentando justificar sua dominação – de classe, etnia e gênero – mediante o emprego de conhecido expediente ideológico, truque retórico surrado, mas eficiente, a seu modo. 

Trata-se de apresentar seus próprios interesses como sendo os da população em geral, de tal sorte a obter o reconhecimento de sua legitimidade junto às camadas que Mosca e Pareto chamavam, depreciativamente, de “massas” – sob a justificativa de constituírem parte do “projeto de país”, de cuja implementação estes poderosos se auto encarregam. Destarte, o desfrute privilegiado das riquezas socialmente produzidas e o exercício do mando por meio do controle das instituições públicas, seriam legítimos, uma espécie de preço a pagar pela sociedade, como um todo, aos ricos e poderosos.

Evidentemente, esta pretensão das sedizentes elites, não encontra respaldo, nem empírico, nem teórico: a construção de projetos nacionais é obra coletiva, que envolve a disputa de interesses e, pois, a participação contraditória dos diversos segmentos sociais – não sendo, em hipótese alguma, o resultado da benesse de alguns iluminados. Além do mais, fosse ela procedente, talvez a situação lamentável de desigualdade social e privação generalizada de direitos que grassa na maioria dos países, fosse explicada pelas inconsistências e insuficiências, para dizer o mínimo, dos projetos de suas classes dominantes. 

  Neste sentido, o caso brasileiro constitui exemplo notável de descaso destas para com a ampla maioria do povo. De fato, malgrado as diferenças entre as concepções sobre a formação do Brasil, frequentemente opostas teórica e/ou metodologicamente, todas apontam para o fato central de nossa história – a indecente desigualdade social, ainda hoje vigente. 

  Este fenômeno deita suas raízes históricas no processo de colonização promovido pelos portugueses, durante o qual, mercê da concessão de sesmarias, instalou-se primeiro ao longo do litoral, e daí para os sertões, nas terras roubadas aos indígenas, e exploradas por quase quatrocentos anos à base do trabalho escravo dos africanos aqui trazidos à força, as oligarquias ancestrais. 

E daqueles habitantes originais da “casa-grande”, contrapostos e superpostos à maioria explorada – nas lavouras de açúcar, nas minas de ouro e diamante, nas plantações de café, nas fazendas e nas charqueadas – originaram-se as autodenominadas elites, as quais, hoje, submetem a maior parte da população nas versões modernizadas das “senzalas”: os galpões miseráveis das grandes propriedades rurais e, sobretudo, as favelas das periferias e morros das cidades inchadas.

Neste particular, Jessé Souza identifica no patriarcalismo e na escravidão a base da estrutura social na época colonial, marcando-a com tal força, que projetam sequelas perversas até nossos dias. A propósito do sistema de poder privado configurado a partir das fazendas, no litoral e nos sertões, o sociólogo registra, na reedição ampliada e atualizada de sua primeira obra: “…o senhor de terras e escravos era autoridade absoluta em seus domínios, obrigando até El-rei a compromissos, dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios” (“Subcidadania brasileira – Para entender o País além do jeitinho brasileiro”, Rio de Janeiro, Leya, 2018; página 155).

A consolidação e reprodução deste padrão foram favorecidas ao longo do tempo, tanto pelo isolamento geográfico das fazendas, como também pela ausência de instituições sociais intermediárias que pudessem, mediante normas consuetudinárias, limitar de alguma forma o exercício do poder pelos senhores rurais. Cabe acrescentar apenas que o sistema político central – desde a Colônia até a República Velha – sempre soube manter o devido equilíbrio com os poderes autárquicos das oligarquias, mediante habilidoso jogo de concessões e cooptações.   

O resultado do processo desigual, violento e autoritário de formação de nossa nacionalidade, se expressa sem disfarces nos dias atuais, entre os membros das classes dominantes – não apenas os oligarcas rurais, mas igualmente os integrantes das burguesias comercial, industrial e financeira.      

  E, da mesma forma, entre os segmentos médios da escala social, encarregados de operar a correia de transmissão da ideologia dos dominadores – marcada pelo racismo, misoginia e homofobia – preconceitos amalgamados na síntese perfeita da aparofobia, o horror aos pobres. Além de manifestação do ódio de classes, este perverso sentimento, patente na conduta rotineira dos homens brancos, e suas mulheres idem, ricos (mas nem sempre), e heterossexuais, nada mais é do que a versão atualizada do “haitismo”, ou “medo do Haiti”, que sempre assombrou os senhores de terra nos tempos da Colônia e do Império – desde a vitoriosa insurreição dos negros escravizados na parte francesa da Ilha de Hispaniola, na inauguração do século XIX. 

Em consequência, as autoproclamadas elites refugiam-se, temerosas, em suas modernas e fortificadas casas-grandes – não apenas nas sedes dos latifúndios do “agro-negócio”, exploradores das novas monoculturas, mas também nos bairros e edifícios “exclusivos” das cidades grandes e médias. Já a maioria, o povo pobre e negro, habita as senzalas contemporâneas – os paupérrimos ranchos rurais e os casebres das favelas urbanas e vilas periféricas. E entre aquelas e estas, no “pátio interno”, circula a dita “classe média”, oriunda dos feitores e das mucamas estupradas – em sua faina permanente para emergir e, enfim, galgar ao mundo glamoroso dos ricos.

Convém destacar que, no caso das pretensas elites brasileiras, além dos preconceitos de classe, etnia e gênero, avulta também, indisfarçável e gritante, outra característica notável: a ignorância. De fato, entre nós, inclusive os chamados “doutores”, exibem-se orgulhosamente ignorantes, em se tratando de história, política, geografia, sociologia, filosofia, artes e temas culturais em geral. 

Por isso, tal como se fez na abertura deste artigo, cabe recorrer novamente à etimologia e à língua francesa, para invocar outro galicismo, que se ajusta, à perfeição, à sua plena caracterização. Empregado como adjetivo ou mesmo como substantivo, o termo “rastaquera” designa “… o sujeito rude, que tem pouca educação ou delicadeza, ignorante, que ostenta riquezas exibindo-as por meio de gastos…novo-rico…” – conforme o sítio de busca Google, este útil amansa-burro internético. Muito curiosa, aliás, a origem do vocábulo “rastaquère” – versão pejorativa do francês para a expressão “arrasta-cuero” dos espanhóis, indicativa de pessoas que no passado arrastavam o couro pelo chão…

Pois deste tipo são os membros das nossas sedizentes elites, os quais, como visto, não escondem, antes ostentam orgulhosamente, junto com as propriedades obtidas mercê de secular exploração da terra e do povo, sua rudeza, ignorância e pouca educação. E que, não por acaso, terminaram por entronizar no centro do poder político do país, um personagem boçal e patético, réplica contemporânea dos capitães do mato de antanho, moldado à imagem e semelhança de seus criadores. 

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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