Opinião
|
1 de agosto de 2022
|
09:39

Sobre pedaladas (por Flavio Fligenspan)

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Flavio Fligenspan (*)

Todos nós sabemos que a Presidente Dilma não caiu por pedaladas fiscais, pretexto inventado pelos golpistas de 2016 e anos depois admitido em ato falho pelo próprio articulador e beneficiário do impeachment. Passado o episódio da queda, hoje se comenta abertamente que as pedaladas foram apenas o arranjo jurídico encontrado para se chegar ao desfecho pretendido, o afastamento da Presidente e a consequente assunção de um outro grupo político. Ficou a marca triste e vergonhosa na história do país e a lição de que não se pode perder o controle sobre as negociações com o Congresso, ainda que muitas vezes se considere ter que fazê-las muito a contragosto.

Pulando para 2022, com Bolsonaro completamente à mercê do Congresso, pedaladas é o que não faltam no cenário, se não no sentido estrito do que diz a legislação, pelo menos no sentido técnico da postergação de consequências e resultados econômicos, gerando efeitos positivos e popularidade para o Governo em 2022 e efeitos negativos a partir de 2023. Vejamos a lista. A primeira foi o fatiamento dos precatórios que deveriam ser pagos neste ano e que, pelo volume, exigiriam um aumento significativo das despesas públicas. Através de uma PEC se distribuiu o valor no tempo, com prejuízo aos credores, muitos já esperando por longos anos terem seu direito efetivado.

A seguir, a perspectiva concreta de uma derrota eleitoral fez o Governo partir para um tudo ou nada, com medida fiscais – redução de impostos, inclusive impondo a diminuição de alíquotas para impostos de competência estadual, como o ICMS – e a PEC apelidada de “kamikaze” ou do “desespero”. Tais ações desencadearam uma série de pedaladas. 

Assim, por exemplo, a redução de impostos sobre combustíveis e energia elétrica diminui a inflação e alivia o orçamento das famílias, principalmente as mais pobres, mas tem data marcada para terminar e causar o efeito contrário na virada do ano. Até porque, como em várias outras ações, há prejuízos imediatos e significativos nas contas públicas que não podem ser suportados por mais tempo.

Vale o mesmo para a ampliação do valor e do número de beneficiários do Auxílio Brasil, além da tentativa de pelo menos diminuir a longa fila de espera de famílias inscritas e ainda não contempladas. Com data marcada para terminar, a ampliação do Programa e seu anunciado retorno aos padrões anteriores vai causar uma “pedalada política” com impacto não desprezível. Some-se a ele o término também programado do Vale Gás  e dos auxílios a caminhoneiros e taxistas.

O caso da ampliação do Auxílio Brasil traz a reboque outra pedalada de alto risco. Trata-se de uma dobradinha do Auxílio com a medida recém aprovada pelo Congresso, que permite os beneficiários do Programa comprometerem até 40% do valor mensal recebido com parcelas de empréstimos consignados. Ou seja, com o valor atual do Auxílio de R$ 400/mês, as famílias poderão contratar empréstimos no sistema financeiro com prestações de até R$ 160/mês a taxas de juros muito altas, segundo simulações que já estão sendo feitas mesmo antes da sanção presidencial da medida. Pense em como uma população sem preparo para avaliar corretamente sua situação financeira e desesperada com a alta da inflação e o acúmulo de necessidades vai correr para tomar estes empréstimos, praticamente automáticos. E o problema pode aumentar muito, pois com a ampliação do Auxílio – por apenas cinco meses para R$ 600/mês –, as prestações podem ir a até R$ 240/mês (40% de R$ 600), fazendo crescer o valor total do empréstimo. Só que na virada de ano o benefício volta a ser de R$ 400/mês, ou seja, a prestação de R$ 240/mês comprometerá 60% do Auxílio e não mais 40%, num plano de pagamentos que pode durar até 24 meses. Trata-se de uma enorme pedalada do poder de compra das famílias mais pobres e mais vulneráveis, que vão comprometer seu Auxílio por muito tempo.

Outro caso de pedalada é o da antecipação do pagamento de dividendos das estatais mais rentáveis para 2022, melhorando o resultado fiscal deste ano e ajudando a pagar o pacote de bondades eleitorais. É claro que estes dividendos não serão pagos em 2023, causando o efeito inverso nas contas públicas.

Com caráter macroeconômico, prevê-se que as medidas anteriores vão reduzir um pouco a inflação de 2022, aumentar um pouco o crescimento do PIB e, com isso, diminuir a taxa de desemprego de curto prazo. Mas estes efeitos artificiais devem ser “corrigidos” naturalmente pela dinâmica econômica de 2023 e talvez até de 2024, revertendo estes resultados. Basta ver como mudaram as previsões dos economistas para estas variáveis nos relatórios especializados a partir da aprovação das medidas eleitorais.

Enfim, há uma série de distorções e artificialismos em gestação neste momento na economia brasileira. Elas são graves e vão repercutir por muito tempo, mas há uma “pedalada” ainda mais grave, esta no campo político, com consequências para o futuro da vida em sociedade e para o funcionamento do arcabouço institucional do país. Trata-se da tentativa de “pedalar” a democracia através do ataque ao processo eleitoral, da imposição de um segundo mandato para Bolsonaro e de um novo ciclo de governos autoritários. Aí sim, teríamos uma postergação de civilidade não apenas por alguns anos, mas por um longo período. Contra isto é que começaram a se levantar vozes até mesmo conservadoras do espectro político, num movimento em defesa do Estado Democrático de Direito que ganhou muito mais força do que se projetava inicialmente.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora