Opinião
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22 de agosto de 2022
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10:22

Assombrações: o dispositivo da branquitude (por Denise F. Jardim)

Corpo de Gabriel Marques Cavalheiro foi encontrado em açude em São Gabriel (Foto: Brigada Militar/Divulgação)
Corpo de Gabriel Marques Cavalheiro foi encontrado em açude em São Gabriel (Foto: Brigada Militar/Divulgação)

Denise F. Jardim (*)

Muito já se falou sobre mitos e assombrações, especialmente na antropologia. Os mitos tem aquele quê de expressão de desejos e disputas de sentidos que se fazem a céu aberto. Mas as assombrações são reduzidas a temores. Algo como um jogo de cara e coroa. Cara, os mitos. Coroa, as assombrações. Com elas, aprendemos sobre o mundo.

Essa semana acordei em uma manhã gélida, com fragmentos da história do “negrinho do pastoreio”. Entrou no meu subconsciente junto com o frio que me remetia aos invernos na campanha, na casa de minha avó, em Dom Pedrito/RS, cidade onde fui parida.

Por certo, a decisão de um pai que, em sua dor imensa, escolheu velar e fazer o passamento de seu filho assassinado em São Gabriel/RS ainda martelava na minha cabeça. Um garoto encontrado sem vida em um açude, depois de ser visto pela última vez, sob a custódia do Estado. O fato ocorreu na cidade em que o guri celebrava alcançar sua vida adulta. 

Foi embalada por essa corajosa decisão deste pai que acordei sobressaltada. Foi Gestalt pura. Como não se tornar mais uma assombração. Se tornar sim a memória da violência!

Quantos jovens negros deixam de ser mera assombração quando são cuidados por seus pais no doloroso passamento? Quantos de nós nos comprometemos a lembrar que a dor nessa magnitude é inadmissível?

Mas há também as dores sequestradas junto com os corpos e que viram assombrações.

Então, deixa eu te recontar a história do “negrinho do pastoreio”. Diferente de outras histórias de caiporas e sacis, essa é uma história muito gaúcha e da mesma fronteira desse território de dor. E, pasme, celebrada como histórias de tradição. Isso diz muito sobre “nós, os gaúchos”, não?

Vejamos:

Eu aprendi essa história nas noites quentes de verão, quando brincávamos na calçada sob os olhares dos adultos. Mas quando os adultos deixavam suas cadeiras na calçada para jantar ou ver TV, deixavam de nos cuidar com seus olhares, continuávamos em horda, no pega pega, que incluía a rua e a iluminação pública que não alcançava toda a rua. Lá no escuro, onde a rua começava ou terminava era campo. Às vezes alagado pela enchente. Dali, surgiam os vagalumes e, com eles, as histórias de boi Tatá e da lâmpada carregada pelo negrinho do pastoreio.

Depois vinham as histórias em seus demais fragmentos. A fonte, não sei. Algum adulto a tinha completado. Naquela hora vivíamos o contato com as assombrações. E se não com elas, com as histórias sobre elas.

A luz no final da rua, que acende e apaga, poderia ser a do menino negro que era “encarregado de cuidar” os cavalos do “patrão”. Hoje não faria sentido, seria puro trabalho infantil. Pois, mesmo na época, a escravização de crianças não era parte da história. Fragmentos eram banidos e assim apagavam as lâmpadas do conhecimento sobre a escravização no pampa. 

Mas este menino, por “azar do destino”, certa noite, não conseguiu conter os cavalos. Um menino, contra a força da natureza, perdeu os cavalos. Já ouço os antropólogos a fazer equações sobre natureza e cultura tomando um atalho que nada tem a ver com o destino de violência imposto ao menino. Enfim, ele tinha um “patrão” e sofreu castigos terríveis. Na hora da contação da história, a parte dos castigos podia ser “atalhada” de acordo com a idade dos ouvintes, já que essa história era “para crianças” no lugar de onde eu venho. Neste lugar que apaga a violência contra escravizados.

Mas é, de fato, uma história do mundo das maldades dos adultos? Não. É uma história do mundo dos “patrões”. Aqueles que não só “empregam” crianças, mas que são os donos de seus corpos. Isso tem outro nome, justo o nome que era suprimido da história que nos contavam: escravização.

Seguindo a história, o “negrinho”, que não tem nome nem parentesco, foi açoitado e deitado sobre um formigueiro. E, neste momento, me vem a história do lobo mau e do chapeuzinho vermelho tantas vezes revistadas por psicólogos e historiadores. Uns dizendo sobre a “desidratação da violência” com o passar dos tempos, e outros mostrando que não eram “contos” infantis e sim sobre violência. Outros ainda apontando que as histórias são “mensageiras’ de modos de socialização. Elas “falam sobre nós”, diriam os antropólogos.

Então, vamos na trilha. O negrinho do pastoreio sublima a escravização, a desidrata, retira da história. Reacomoda a memória como um conto improvável para assombrar crianças desobedientes. 

Só que não.

É muito mais.

Na história, o negrinho morto por ação violenta de um patrão, volta com sua lâmpada atrás dos cavalos e se torna uma assombração generosa que ajuda a qualquer aflito a encontrar objetos perdidos. Ele é enfim, como assombração, a corporificação da inocência. Não raro, a branquitude converte a inocência aviltada em “infinita bondade”. Esta conversão apaga da história a maldade ao qual foi submetido. Mas a história volta à tona para ser lembrada, persiste como assombração. Lembra que houve sim uma vida aviltada no “nosso mundo”, ou várias vidas aviltadas se considerarmos os seus entes queridos apagados dessa história. A assombração aponta que no mundo dos vivos não se admite que jovens sejam donos de si, de seus destinos, de seus corpos e estejam a andar de noite “sem patrão”. Mas o “negrinho do pastoreio” persiste e segue nas narrações de aparições à noite.

Acordei com a imagem de uma sábia decisão de uma família em dor que decide que o jovem assassinado, por aqueles que são “donos da rua” deve voltar a São Gabriel onde terá a função de lembrar, na sua inocência, que a assombração está no mundo dos vivos, é persistente, e se chama racismo.

(*) Antropóloga – Professora Titular do departamento de antropologia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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