Opinião
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5 de julho de 2022
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07:35

O retorno de Ulisses e a primavera (Coluna da APPOA)

"A dívida de Ulisses é simbólica- com seus deuses, sua família, sua comunidade e tem força de lei". (Reprodução)

Robson de Freitas Pereira (*)

eu, tu e todos no mundo/no fundo/ tememos por nosso futuro/
Et e todos os santos valei-nos, livrai-nos desse tempo escuro”

Gilberto Gil [1]

A história é bem conhecida, faz parte de uma das poucas grandes narrativas que ainda se sustentam nos tempos atuais. Na Odisseia, em determinado momento de suas navegações, Ulisses desce aos infernos.  Vai em busca de respostas, entre elas como conseguir retornar são e salvo a Itaca, reconquistar sua casa, reencontrar o filho- Telêmaco e a mulher que o espera, Penélope. 

No reino de Hades (e morada dos mortos), consegue a autorização dos deuses para ultrapassar os perigos em segurança. Porém, com uma condição: depois da reconquista, terá mais uma tarefa a cumprir. Isto, ele escuta nas palavras proferidas pelo vidente Tirésias: “ Se conseguires refrear a cobiça e a dos teus companheiros, à pátria hás de ir ter estremada…quando, porém, no interior do palácio tiveres matado os pretendentes, com bronze afiado, …põe-te de novo a caminho, com um remo de fácil manejo, até te encontrares no meio de seres que o mar nunca viram, que por costume não tenham com sal temperar a comida e desconheçam navios dotados de proa vermelha, bem como remos de fácil manejo, que às naus servem de asas. Dar-te-ei um bem visível sinal, que não deves deixar passar logo que outro homem no mesmo caminho que o teu encontrares, e te disser que uma pá de espalhar grãos de trigo carregas, crava, então, nesse lugar o teu remo de fácil manejo, e sacrifícios esplêndidos logo oferece a Poseidon…Volta, depois, para casa e oferece hecatombes sagradas às divindades eternas, que moram no céu espaçoso, a todas elas, por ordem. Distante do mar há de a Morte te surpreender por maneira mui doce e suave...”  [2]

Depois de retornar a salvo e reaver seus domínios, Ulisses divide com Penélope a profecia que contém a tarefa a ser cumprida: levar um remo nos ombros até uma terra tão distante que os habitantes não conheçam o mar, tampouco tenham os mesmos costumes e confundam o remo -instrumento de navegação com uma pá- utensílio que serve para trabalhar a terra. A esposa o acalma dizendo: “Se uma velhice assim calma, de fato, te foi prometida, é de esperar que consigas vencer todos esses trabalhos.”

Do muito que já foi escrito sobre a jornada de Odisseu e sua esperteza na guerra contra Tróia (Ilíada) onde inventou o famoso “cavalo” que levou os gregos à vitória, e nos dez anos cheios de peripécias necessários para retornar a sua terra natal, ficamos com esta última tarefa. Pagar uma dívida com os deuses é conseguir apresentar um instrumento fundamental para si, mesmo que aos outros pareça completamente desconhecido. Ou melhor, que o utensílio que carrega nos ombros possa ser confundido com outra coisa, que tenha uma função de arar a terra, ao invés de possibilitar a navegação. Em suma, que os objetos possam receber uma nomeação diferente da que estamos acostumados e, nem por isto, aquele que o carrega seja nosso inimigo e tenha que ser destruído. O exercício de um diálogo passa pelo reconhecimento do outro, mesmo que ele aparentemente fale outra língua e tenha outros costumes. Aceitar o equívoco talvez seja nossa chance de recomeçar. Fazer o luto pelas experiências passadas, muitas delas dolorosas, com perdas inestimáveis por vezes. 

 A mitologia e a história vêm em nosso auxílio porque estão repletas de derrotas que transmitiram a semente de uma transformação. Prometeu e Atlas, dois titãs que se insurgiram, foram derrotados e sofreram castigos pela eternidade. Porém, conseguiram transmitir o domínio do fogo e a sabedoria para a humanidade. O desejo de mudança pode ser evanescente, mas não se apaga facilmente. Ao contrário, persiste, nos fragmentos, nas memórias, nas brechas que testemunham as fissuras daquilo que busca se impor pela violência. A dívida de Ulisses é simbólica- com seus deuses, sua família, sua comunidade e tem força de lei. 

Estamos no inverno, ainda. Mas a preparação da primavera começa a cada dia. Em todos os momentos em que vislumbramos, compartilhamos com outros nosso desejo de recomeçar. Apesar do medo e da incerteza. O futuro não está garantido, mas por isto mesmo, começa a se desenhar com nosso compromisso de desejar o impossível de “ter olhos pra ver/a maldade desaparecer”. [3]

[1] Extra”, Gilberto Gil, canção do álbum homônimo de 1983

[2] Homero, Odisseia, canto XI: consultando os mortos. Tradução Carlos Alberto Nunes. Nova Fronteira. RJ.

[3] “Juízo final”, composição de Nelson Cavaquinho

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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