Opinião
|
12 de julho de 2022
|
06:50

Meninos ilustrados (Coluna da APPOA)

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

A pele é um livro aberto aos olhos alheios. 
H-P. Jeudy

Entrou na sala com um moletom de manga comprida. Nenhum problema, não fosse o sol de verão refletido na terra vermelha a deixar os dias muito mais quentes que os trinta graus do termômetro de rua. A roupa encobria, tal qual a do Homem ilustrado [1], uma tatuagem maldita. Fazia pouco tempo que ele havia descoberto o efeito de deixá-la à mostra, de convocar o olhar sobre si, sobre ela. 

Não parecia uma tatuagem enigma, imagem simbólica, cujo sentido é dado pela narrativa da pessoa que a escolheu inscrever em si. A que o guri carregava em toda extensão do braço parecia dizer-se, dizê-lo. Causava espanto, rechaço, mas quando ele contava sua história despertava mesmo era compaixão por tamanho desamparo. 

Ele e outros adolescentes de idades próximas se reuniam aos finais de semana para fazer pequenos furtos. O dinheiro tinha destino certo. Beber na praça do centro da pacata cidade do interior, e frequentar bailões onde a dança e as gurias se reuniam. Naquela noite, com os parceiros de aventuras, entre goles de cachaça, risadas, e conversas sobre quem era o mais audaz, aceitou o desafio de tatuar-se, escarificando a pele do braço com agulha e tinta de caneta esferográfica, a frase 100% bandido. Nem bem a tatuagem, que ele exibia pela vila com orgulho galináceo embriagado, havia cicatrizado, viu-se preso. 

A prisão chegou como atestado de que a leitura daquela inscrição em seu corpo reconhecera uma evidência, uma declaração pública, literal. Embora os efeitos desse reconhecimento talvez não fossem bem o que ele imaginara receber de princípio quando a tatuagem ainda estava no campo da brincadeira entre os pares.

Outro guri ali no centro-oeste do país foi notícia de jornal há poucos dias. O homem ilustrado de volta à memória. Aceitou o desafio dos amigos para tatuar-se com ferro em brasa o número vinte e dois nas costas, à semelhança das logomarcas feridas na anca dos grandes animais de criação para certificar a propriedade. Ainda que tenha sido uma evidente declaração, sobre sua escolha política, é também verdade que há ao menos uma pequena diferença de leitura em relação à frase tatuada no outro adolescente. Enquanto a primeira parece sentença de compreensão imediata, a segunda exige do leitor um tempo maior entre o instante de ver e o tempo de compreender. 

Não é incomum não se conseguir explicar porque se fez algo que mais nos trouxe danos que os ganhos inicialmente supostos, para esclarecer uma escolha impetuosa. O silêncio após um acontecimento violento, até mesmo para os que começaram como brincadeira, pode ser eloquente  resposta a uma demanda, urgente, para dar explicações quando ainda se está sob efeito desse instante de ver. Além disso, é só porque as evidências enganam – ainda se as marcas e as frases no corpo pareçam verdade literal – que é possível dizer, e é um alívio quando encontramos alguém disposto a ouvir no nosso tempo de contar.

P.S.: Se beber, não se tatue.

[1] O homem ilustrado de Ray Bradbury (1951) reúne contos de ficção científica, emoldurados por uma história fantástica narrada em dois tempos, no prólogo e no epílogo. Um andarilho em roupa de inverno num verão escaldante esconde o corpo tatuado. As gravuras, inscritas por uma bruxa, ganham vida à noite enquanto ele repousa. Elas encenam histórias (nos contos) para um espectador, que vive então uma espécie de experiência onírica. Nas costas dele uma pequena área vazia, enigmática, revela uma cena premonitória terrorífica do e para o espectador. O homem ilustrado carrega o destino do espectador que ele próprio desconhece, por não poder vê-la encenada em suas costas, e porque ninguém permanece a seu lado para contar-lhe o enigma desvelado. 

(*) Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, e do Instituto APPOA

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora