Opinião
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7 de junho de 2022
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07:30

Sobrevidas (Coluna da APPOA)

Abdulrazak Gurnah, Pr~emio Nobel de Literatura 2021 (Foto: PalFest/Creative Commons)
Abdulrazak Gurnah, Pr~emio Nobel de Literatura 2021 (Foto: PalFest/Creative Commons)

Lucia Serrano Pereira (*)

Hamza é acordado por ela, o rosto molhado e o corpo tomado pelo suor. Um soluço preso na garganta, enquanto os dois ficavam agora, quietos na cama, no escuro, esperando passar. Ela diz que ele estava chorando, e pergunta “É ele de novo?” Hamza responde que sim, mas que não é tanto a pessoa, pode ser ele, ou o  oficial, ou o pastor. Mas é a sensação que vem com eles. Sensação de perigo e de terror, como se não fosse possível fugir. E os barulhos e os gritos e o sangue. “É sempre a guerra? Sempre.”

Estamos na África Oriental, começo do séc. XX. Sobrevidas é o livro mais recente, e primeiro traduzido para o português, de Abdulrazak Gurnah, escritor nascido na Tanzânia e que vive no Reino Unido, premio Nobel em 2021. Gurnah sai de seu país na década de 60, por ocasião das perseguições aos cidadãos árabes durante a Revolução de Zanzibar. Professor na Universidade de Kent, ao longo da vida. 

Sobrevidas. Acompanhamos a trajetória de Khalifa, jovem que vai conseguir estabelecer seu caminho trabalhando para um mercador no litoral do Oceano Índico. Saiu de sua cidade pequeno, para estudar em outra cidade, e perde os pais que já não via há muito. Vai compondo a vida de trecho em trecho, na contingência do que foi se apresentando, longe dos seus, mas também conseguindo estabelecer um trabalho e um amor. 

Hamza, outro jovem que vem a seguir, e quem vamos acompanhar pela narrativa de Sobrevidas, tem uma história brutal. Ainda menino é levado também por um mercador, com quem o pai tem uma dívida importante. O filho é o pagamento, e vai escravizado por longos anos. Adolescente, na mesma cidade de Khalifa, consegue escapar, e, desesperado, escolhe, sem saber, o pior. Se alistar na Schutztruppe ( que foi ativa do final do séc. XIX a 1918). Anos de terror.

Ele vai conseguir ao longo do tempo reencontrar a possibilidade de uma vida; claro, seu caminho vai ser tramado com a ajuda de Khalifa,  e seguimos o desdobrar de mais uma geração. Hamza consegue construir uma família, também marcada pela história e pelo peso do colonial sobre a África que deixa um rastro de violência com a qual vai se ter que lidar sempre, junto e ao lado do que pode se constituir para fora dela. Horror que resta em Hamza, que já anos fora da situação, insiste, volta nos pesadelos. Sensação de perigo e terror, difusa, presente mas ao mesmo tempo, felizmente, fora de um cotidiano onde ama, ri, convive, reencontra pequenos prazeres. Efeitos paradoxais. É o que vai retornar em seu filho como vozes vidas de outro lugar e que pedem pelo paradeiro do tio, que se foi também para uma guerra que não era a sua – lutar ao lado dos alemães que dizimavam e submetiam os seus. 

Sobrevidas é como se traduziu do original inglês Afterlives. Afterlives também pode significar vida após a morte, ou vidas pós-…, ou existências posteriores, ou desdobramentos. Cria uma zona de significância que faz o ambiente da narrativa. Vidas após a morte? Talvez uma forma de dizer do que resulta da violência colonial na África, e que ao mesmo tempo contou com resistências que também se construíram. Tanto para buscar a saída do regime colonial, ao longo de todo o séc. XX, como para viver a vida cotidiana, comum, com desejo, com possibilidades de sobreviver subjetivamente à subjugação. 

Cada um deles, Khalifa, Hamza, Aliya, sua mulher, ( e tantos milhares de outros) tiveram de algum modo a buscar uma outra vida, em um outro lugar, para poder seguir. Como os refugiados de hoje. 

Sobrevida. Para fora do trauma das guerras coloniais e dos destinos que se desatam também por contingências do acasos, de um caminho que se abre no meio do sem sentido e desencontros que caem na cabeça desorientando a vida.

Na Deutsch Ostafrika, hoje Tanzânia, a Schuztruppe, na época, era o que se expandia, inexorável. Todos conheciam o exército askari, os africanos soldados da Schuztruppe, e de sua ferocidade sobre o povo. Todos sabiam de seus oficiais alemães e de sua crueldade. Hamza, jovenzinho, se vê tomado de angústia porque tinha se voluntariado por impulso, na tentativa de fugir ao insuportável. E ele que sempre havia vivido com medo encontra uma satisfação inesperada, ao início, com o treinamento, ao ver suas forças aparecendo e se consolidando. Em um momento chega a sentir orgulho em fazer parte daquele grupo, e não mais humilhado e ridicularizado como sempre. “Quando começaram a sair para as manobras táticas ele viu o terror dos habitantes do vilarejo quando os askaris chegavam e não conseguiu conter o entusiasmo e o prazer diante do medo deles”. 

Este o verdadeiro terror da alienação que toma por dentro, mas que em Hamza não vinga, como se diz. Ele logo percebe que adentrou em uma escravidão de outra ordem, e vai, de todas as maneiras, no simples, não no heróico, buscando se desfazer das amarras. 

Será que ele vai conseguir pegar um fio que permita achar um lugar para si? É a pergunta que nos toma, apreensivos, como leitor. Da posição objetal onde é colocado – esses askaris são força bruta e de gozo; ao grande esforço que faz em aprender a ler e escrever, ganhando um mundo surpreendente e novo, sim, Hamza persiste, chega perto da morte atacado pelo oficial que quase rasga seu corpo, e  tem a paciência da recuperação que leva anos.

É comovente acompanharmos os recursos que vai conseguindo e aos poucos achar que pode ter algo bom em sua vida, compondo com partículas mínimas, um lugar para dormir, uma palavra de alguém, o ar do mar, o encontro com Afiya, a humanidade de Khalifa, uma possibilidade de andar na cidade sem medo – só isso e tudo isso que vai permitindo que a vida se reapresente, por fim. Mas, principalmente, o movimento de poder ter força e persistência para tomá-la nas mãos.

 Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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