Opinião
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28 de junho de 2022
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07:08

Emoções em cena: uma história (Coluna da APPOA)

Divulgação
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Alfredo Gil (*)

A História é uma disciplina que concebemos, em geral, como sendo o estudo dos grandes acontecimentos, das guerras, dos movimentos coletivos, das revoluções, etc., e é desta forma que normalmente a aprendemos na escola. Deste ponto de vista, pensamos o homem sempre inserido em um grupo que evolui em torno de ideais ou de um grande líder, e reconhecemos este indivíduo como agente dos fatos, mas que sofre, também, as suas consequências.

Somente a partir da metade do século passado, alguns historiadores mudaram de perspectiva relativizando a tomada macroscópica habitual como modo de apreensão da realidade histórica para conceber que outros objetos, não factuais, tenham a dignidade de um estudo histórico, já que estes sofrem também mudanças no decorrer do tempo e, sobretudo, nos ensinam sobre nossa evolução e nossas mutaçōes.

Nessa perspectiva, uma das linhas que ampliaram a noção de objeto historiográfico é a chamada História das mentalidades e das sensibilidades, oriunda da École des Annales. Assim, um Philippe Ariès vai se interessar pelas diferentes atitudes do homem diante da morte, começando pela Idade Média. Alain Corbin, por sua vez, retraça a aparição dos lazeres entre 1850 e 1960 no Ocidente e elabora também uma História do silêncio, da prostituição, etc.

Nessa mesma orientação, temos que destacar os trabalhos de Georges Vigarello que se dedicou às histórias do estupro e do sentimento de si nas relações com a percepção do corpo, assim como desenvolveu uma história da virilidade.

Então, não por acaso, sob a curadoria do próprio Vigarello, pode-se assistir agora a uma exposição deslumbrante intitulada “O Teatro das emoçōes”, atualmente no Museu Marmottan Monet em Paris. É através da pintura, partindo da Idade Média que descobrimos a existência de uma História das emoções.

O conjunto das obras representa uma progressiva conquista no que diz respeito às expressões e, sobretudo, no decorrer do tempo, à interiorização das emoções. Vemos que na Idade Média, por exemplo, a emoção se manifesta não pela expressão do rosto, mas por sinais exteriores: num rosto fixo a tristeza será representada pelo lenço que enxuga a lágrima que sequer está desenhada. A representação da emoção aqui não se estampa no rosto, mas se revela nos acessórios externos.

No século XVI, com o Renascimento, assiste-se ao aparecimento de traços sutis da fisionomia e um esboço de movimento. A Joconda, de Leonardo Da Vinci, que insinua um enigma, é o melhor exemplo.

Este movimento ganha novas dimensões no XVIII onde se introduz não mais somente a emoção do rosto, mas a paixão do corpo em ação, ou dos corpos, como se pode apreciar no quadro Le Verrou, de Jean-Honoré Fragonard. Aí testemunhamos que a representação da emoção é não somente teatralizada mas sexualizada.

Na primeira metade do XIX, o pintor vai mostrar as várias facetas do homem: o orgulho, o medo, a fragilidade, a alegria. O quadro estupendo chamado “Trinta e cinco cabeças de expressão”, de Louis-Léopold Boilly, as ilustra. A partir de então, buscam-se não somente a fisionomia e o físico, mas as distinções individuais que traduzem um máximo de singularidade, ou, como diz Vigarello, “tem-se uma individualização do sentimento”.

No século XX, com a guerra, tratar-se-á de representar o irrepresentável. Tem-se o exemplo de Egon Schiele com suas variações de casais amorosos em mal de forma, mal formados, entrelaçados.

Em caso de impossibilidade de se ver esta exposição, vale a pena conhecer os três tomos da Historia das emoções, publicados em 2016, com a organização de G. Vigarello, A. Corbin e outros. A exposição ilustra as obras e nos ensina diferentes interseções entre o que habitualmente chamamos a grande História e o teatro que se encena em cada um de nós, que tem por palco a subjetividade de cada época.

Parêntese: em 1920, Kodak subverte a cena fotográfica lançando uma máquina fotográfica de um dólar e mercantiliza o sorriso. Até então, uma pose era sempre solene, sem gracinhas. Kodak dessacraliza o produto para uma venda massiva, instigando o modelo “be happy” diante da objetiva. O slogan de marketing era “you press the button, we do the rest”. Assim, a objetiva de Kodak entrou no espaço subjetivo de cada um propondo uma nova forma de expressão.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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