Opinião
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7 de junho de 2022
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19:26

A Cúpula das Américas: a ilusão e a farsa (por André Moreira Cunha e André Ferrari)

Joe Biden. Foto: Adam Schultz/White House
Joe Biden. Foto: Adam Schultz/White House

André Moreira Cunha e André Ferrari (*)

We can make America, once again, the leading force for good in the world” (Inaugural Address by President Joseph R. Biden, Jr., 20/01/2021)

“Political language is designed to make lies sound truthful and murder respectable, and to give an appearance of solidity to pure wind  George Orwell (Politics and the English Language, 1946)

A ilusão…

Entre os dias 06 de 10 de junho, os Estados Unidos (EUA) serão os anfitriões da 9ª Cúpula das Américas. Após quase três décadas do primeiro encontro em Miami (1994), chefes de Estado dos países americanos retornam àquele país, desta vez em um ambiente de tensões que se exacerbam no plano internacional. Quando o presidente Bill Clinton teve a ideia de reunir as lideranças nacionais dos seus vizinhos, com a tradicional exceção de Cuba, os EUA ainda viviam o clima de vitória definitiva sobre o mundo comunista. E, portanto, nada mais natural do que estruturar as relações regionais em torno da premissa de que a hegemonia estadunidense seria incontestável, tanto no Hemisfério Ocidental, quanto no mundo.

Agora, o clima é outro. A divisão da sociedade estadunidense se aprofundou em todos os planos. Já não é possível disfarçar as profundas cicatrizes deixadas por décadas de neoliberalismo. Uma elite econômica e política que não se mostra capaz de conceber um projeto de nação que inclua a todos os segmentos sociais, imagina ainda projetar internacionalmente a ilusão de ser portadora de valores universais e democráticos. E, mais importante, mantem o desejo de controlar seu quintal com “um sorriso no rosto e um porrete na mão”. 

Cuba, Venezuela e Nicarágua não foram convidados para na 9ª Cúpula das Américas sob o pretexto de que seus líderes não teriam sido escolhidos democraticamente. Diante deste fato, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, ameaçou não comparecer. A Bolívia, a Guatemala e os países da Comunidade e Mercado Comum do Caribe e atual Comunidade do Caribe (CARICOM) sinalizam o mesmo desconforto e disposição. López Obrador não mediu suas palavras ao anunciar o seu boicote ao evento: Não pode haver Cúpula das Américas se todos os países do continente não participarem… Ou pode haver, mas acreditamos que isso significa continuar com a política de outrora, de intervencionismo, de desrespeito às nações e suas populações.”

Os diplomatas estadunidenses seguirão pressionando o líder mexicano a reverter sua posição. Até o dia 10, muita coisa pode acontecer, inclusive nada. Qualquer que seja o desfecho real deste impasse, o estrago já está feito. Se, por um lado, a decisão da administração Biden encontra respaldo legal, por outro, abre margem para toda a sorte de críticas. Em 2001, sob a influência do então Secretário de Estado de Bush, Colin Powell, deu-se a seguinte redação ao artigo 19º da Carta Interamericana da Democracia da OEA: “… qualquer alteração ou interrupção inconstitucional da ordem democrática em um Estado do Hemisfério constitui um obstáculo intransponível à participação do governo desse Estado … (na)  Cúpula das Américas.”. Tal fundamentação não obscurece a natureza política da decisão, cujas bases podem ser questionadas. 

A OEA é uma instituição centenária, cuja primeira reunião ocorreu em Washington-DC, em 1889. Está composta pelas trinta e cinco nações independentes dos continentes Sul e Norte-Americano. Se a geografia une estas duas massas de terra, compondo o que se denomina de “Hemisfério Ocidental”, a política demarca a área de influência expressa pela Doutrina Monroe. Em sua mensagem anual ao Congresso, em dezembro de 1823, o então presidente da jovem república afirmou que seu país não desejava interferir nas disputas entre os poderes europeus. Da mesma forma, entendia que quaisquer intentos de aqueles atuarem sobre a soberania das nações independentes do continente representariam agressões diretas aos EUA [1].  

Três anos após este marco, Simón Bolivar foi responsável pela primeira tentativa de criar um pacto securitário e uma assembleia supranacional que reunisse as repúblicas americanas. Como tem sido recorrente na história latino-americana, as ausências foram tão ou mais relevantes do que as presenças, e as grandiosas intenções expressas em documentos oficiais não ganharam concretude no mundo real. O encontro, que proclamou o ” Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua” de Bolivar, foi boicotado por Argentina, Chile e Paraguai, que não confiavam na liderança do “Libertador”, pelo Império do Brasil, e pelos EUA, cujo representante chegou somente após o término das discussões. 

Desde então, e com o crescente poder econômico e militar dos EUA, os sonhos integracionistas e os desejos de alguns de seus países por maior autonomia tiveram de se ajustar aos desígnios de Washington em suas inúmeras lutas para atingir e manter a hegemonia global. Como sintetizou recentemente o presidente Biden: “Costumávamos falar, quando eu era jovem, na faculdade, sobre o ‘quintal da América’…. Não é o quintal da América. Tudo ao sul da fronteira mexicana é o jardim da frente da América.”. As elites estadunidenses podem ser acusadas de tudo, menos de relaxar na defesa dos seus direitos de propriedade. Por isso mesmo, a insatisfação de alguns países latino-americanos com exclusão promovida pelos EUA nesta 9ª Cúpula das Américas, foi notada por Beijing, outro ator que ganhou peso na região. O porta voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, registrou com clareza a posição do seu país: “A América Latina não é ‘quintal’ ou o ‘jardim’ dos EUA, e a Cúpula das Américas não é ‘a Cúpula da América’. Como anfitriões, os EUA precisam parar com todas as suas abordagens hegemônicas, dar respeito concreto aos países da América Latina e do Caribe, ouvir humildemente a voz da justiça da maioria, fazer com que a cúpula se concentre nas preocupações do continente, impulsionar a cooperação e a unidade e potencializar a felicidade entre as pessoas.”

A China tornou-se um parceiro central das economias latino-americanas, superando, em alguns casos e dimensões, aos EUA. Entre 2002 e 2021, comércio bilateral entre a América Latina e a China passou US$ 18 bilhões para US$ 449 bilhões. No ano passado, o gigante asiático importou US$ 221 bilhões em mercadorias na região. A China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile, do Peru e do Uruguai, e o segundo principal parceiro dos demais países. A potência reemergente possui acordos bilaterais de livre comércio com Chile, Costa Rica, Peru e Equador, e investimentos realizados na região, desde 2005, que se aproximam de US$ 140 bilhões. As relações diplomáticas são crescentes e a China busca construir infraestruturas físicas e institucionais para aprofundar, ainda mais, seus laços com os povos latinos. 

Os chineses sabem que a estratégia estadunidense para conter a sua ascensão é um jogo com múltiplos fronts, dentre eles a América Latina. Entre o bullying explícito dos republicanos entrincheirados na administração Trump e a retórica dos valores democráticos de Biden, muitas lideranças das nações latino-americanas, particularmente aquelas de governos não alinhados automaticamente a Washington, sabem o preço a ser pago por eventuais apoios econômicos do seu vizinho mais ilustre, bem como devem esperar intervenções ativas, mesmo que discretas, nas soberanias locais, sempre que os interesses estadunidenses forem ameaçados.   

… e a Farsa.

Em encontros recentes promovidos diretamente pelos estadunidenses ou sob o manto de sua influência, países não alinhados ficaram de fora. A “Cúpula para a Democracia” de 2021, patrocinada pela administração Biden, foi um exemplo contundente neste sentido. Qualquer país na esfera de influência dos EUA, a despeito de credenciais questionáveis na defesa efetiva dos valores democráticos, foi convidado. Não foram poucos os analistas que apontaram para a imensa hipocrisia daquela iniciativa. A revista Time registrou à época que: “… não há explicação de porque alguns países, que estão longe de serem democráticos, foram convidados. Mais de 30% dos 110 países convidados são classificados pela Freedom House … como apenas ‘parcialmente livre’. Três ‘não são livres’ – Angola, República Democrática do Congo e Iraque. Mais de uma dúzia são classificadas pelo Instituto V-Dem da Suécia como “autocracias eleitorais”, incluindo Filipinas, Índia e Quênia”. 

Este enredo está se repetindo, em menor escala, na Cúpula das Américas. O sociólogo Heinz Dieterich reafirmou a posição expressa pela Times. Para ele, os EUA não têm credenciais para se colocar como defensor na democracia na região: “A verdade histórica é que não há outro estado que tenha destruído mais governos e instituições democráticas, no hemisfério e globalmente, do que o imperialismo anglo-americano: os EUA e o Reino Unido, por meio de intervenções diretas, revoluções coloridas, sanções econômicas, bloqueios, etc.”. É ampla e diversificada a lista de intervenções dos EUA em nações, territórios ou povos (até então) soberanos. O Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA reporta centenas de eventos onde as suas forças armadas atuaram para além de sua fronteira no período entre 1798 e 2022. Em 2016, o Washington Post havia estimado o envolvimento dos EUA em mais de setenta casos de derrubada de governos no exterior nos anos da Guerra Fria, mesmo aqueles eleitos legitimamente por suas populações. 

A Cúpula de Los Angeles ocorre em meio ao aumento nas tensões internacionais derivadas do esforço estadunidense em conter seus rivais, China e Rússia. Nos últimos anos, particularmente nas administrações Trump e Biden, foi-se tornando mais explícito o desconforto das elites políticas de Washington com a conformação de um sistema global de poder de caráter multipolar. Em 2017, o governo Trump lançou o documento orientador de sua política de segurança, o “National Security Strategy of the United States of America”. Os estrategistas estadunidenses foram explícitos  em definir as ameaças existenciais ao poder global do país: 

“Uma continuidade central na história é a disputa pelo poder. O período atual não é diferente. Três conjuntos principais de desafiantes – as potências revisionistas da China e da Rússia, os estados rebeldes do Irã e da Coreia do Norte e as organizações de ameaças transnacionais, particularmente os grupos terroristas jihadistas – estão competindo ativamente contra os Estados Unidos e nossos aliados e parceiros. Embora diferentes em natureza e magnitude, esses rivais competem nas arenas política, econômica e militar e usam tecnologia e informação para acelerar essas disputas e mudar os equilíbrios de poder regionais a seu favor. Essas disputas são fundamentalmente políticas e ocorrem entre os que defendem sistemas repressivos e os que favorecem sociedades livres. A China e a Rússia querem moldar um mundo antitético aos valores e interesses dos EUA. A China procura deslocar os Estados Unidos na região do Indo-Pacífico, expandir o alcance de seu modelo econômico dirigido pelo Estado e reordenar a região a seu favor. A Rússia busca restaurar seu status de grande potência e estabelecer esferas de influência perto de suas fronteiras.” (p.25)

No “National Security Strategy”, a China é mencionada 33 vezes, a Rússia 25 vezes, ao passo que Argentina, Brasil, Colômbia e México, as maiores economias latino-americanas, não mereceram nenhuma menção. Cuba, Venezuela e outros países da América Central são citados em função dos riscos supostamente associados aos seus governos de esquerda. Sobre os vizinho, nada além do velho mantra: “Estados estáveis, amigáveis ​​e prósperos no Hemisfério Ocidental aumentam nossa segurança e beneficiam nossa economia.” (p. 51)

Biden definiu a sua orientação estratégica nas áreas de segurança nacional e política externa em seu discurso de posse, em manifestações posteriores e em documentos oficiais.  Em março de 2021, veio à público o “Renewing America’s Advantages – Interim National Security Strategic Guidance”, registra que: “…. devemos lidar com a realidade de que a distribuição de poder em todo o mundo está mudando, criando novas ameaças. A China, em particular, tornou-se rapidamente mais assertiva. É o único concorrente potencialmente capaz de combinar seu poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para montar um desafio sustentado a um sistema internacional estável e aberto. A Rússia continua determinada a aumentar sua influência global e desempenhar um papel disruptivo no cenário mundial. Tanto Pequim quanto Moscou investiram pesadamente em esforços para verificar os pontos fortes dos EUA e impedir que defendamos nossos interesses e aliados em todo o mundo.” (Renewing America’s Advantages, 2021, p. 8).

Com Biden, a América Latina voltou ao radar nos termos tradicionais da diplomacia do internacionalismo liberal, onde os interesses econômicos e políticos são encobertos na retórica dos valores democráticos: “Como os interesses nacionais vitais dos Estados Unidos estão inextricavelmente ligados às fortunas de nossos vizinhos mais próximos nas Américas, expandiremos nosso envolvimento e parcerias em todo o Hemisfério Ocidental … com base em princípios de respeito mútuo e igualdade e um compromisso com a prosperidade econômica, segurança, direitos humanos e dignidade.” (Renewing America’s Advantages, 2021,p. 10)

A despeito das belas palavras, é voz corrente entre analistas políticos e latino-americanistas que a imagem dos EUA e sua influência na América Latina estão em baixa. Para Manuel Orozco, diretor think tank Inter-American Dialogue: “A diminuição da influência dos Estados Unidos na América Latina é um subproduto da polarização tóxica … tanto aqui quanto no sul… Não tivemos a liderança para mostrar por que a democracia é importante. Política e democracia não se falam.” Por isso mesmo, a retórica tradicional já não produz o mesmo efeito. Benjamin Gedan, diretor do programa de América Latina do Wilson Center e que já trabalhou para o governo, afirma que Biden deve oferecer medidas concretas e de impacto para a região. Rebecca Bill Chavez, diretora do Inter-American Dialogue e ex-servidora do Pentágono, concorda com esta perspectiva e sinaliza para a necessidade de continuidade no esforço de aproximação depois da Cúpula: “Isso não deve ser visto como um evento único… (mas) como um ponto de partida para a ação.”. 

Ainda é cedo para saber se Washington fará mais do que simplesmente demandar alinhamento direito e subordinação integral dos seus “aliados” e “vizinhos”. Quando o presidente James Monroe anunciou suas intenções, os EUA não tinham poder para interferir nos destinos das nações independentes do continente. Quase duzentos anos depois, nem todo o seu poder parece ser capaz de projetar admiração ou confiança nos povos que habitam ao sul do rio Grande.

Nota

[1] In the wars of the European powers in matters relating to themselves we have never taken any part, nor does it comport with our policy so to do. It is only when our rights are invaded or seriously menaced that we resent injuries or make preparation for our defense.…  With the existing colonies or dependencies of any European power we have not interfered and shall not interfere. But with the governments who have declared their independence and maintained it, and whose independence we have, on great consideration and on just principles, acknowledged, we could not view any interposition for the purpose of oppressing them, or controlling in any other manner their destiny, by any power in any other light than as the manifestation of an unfriendly disposition toward the United States.” (Monroe Doctrine, 1823)

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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