Opinião
|
18 de maio de 2022
|
15:16

Reorganizando as cadeias produtivas globais? (por Flávio Fligenspan)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Flávio Fligenspan (*)

Desde os anos 1970, quando o paradigma da produção industrial rígida do pós guerra entrou em crise, o mundo desenvolvido começou a transição para um novo paradigma – flexível – que reordenaria os produtos, a forma de produzir, a organização do trabalho e a distribuição da produção no mundo. Uma pressão de custos – representada pelos dois choques do petróleo, de 1973 e 1979, e pela alta expressiva dos juros americanos em 1979 –, associada a progressos tecnológicos na área das comunicações e dos transportes, permitiu a mudança de paradigma. E a concorrência capitalista exerceu seu papel, exigindo das empresas esta adaptação, isto é, não se tratou apenas de condições que “permitiram” a mudança, mas de um imperativo. Quem não mudasse perderia a corrida.

Novos conceitos passaram a dominar o debate sobre a produção industrial no mundo: just in time, normas ISO, kanban, outsourcing, células de produção, trabalhadores multifuncionais, máquinas de controle computadorizado, e tantos outros. A indústria asiática mostrou enorme capacidade de adaptação ao novo paradigma e, inicialmente com salários muito baixos, se colocou no mapa do fornecimento mundial de peças e produtos finais. Nos primeiros momentos havia problemas de qualidade, mas foram sendo superados, e, com investimentos pesados em maquinário, educação e capacitação, vários países começaram a se destacar. Japão, num primeiro momento, e Coréia do Sul e China, depois, são os maiores exemplos. Logo a Ásia compreendeu a importância do desenvolvimento tecnológico e não tardou a se colocar como desenvolvedora de tecnologia e de produtos, deixando para trás a fama de ser apenas uma copiadora e montadora de produtos projetados pelo mundo desenvolvido.

O Brasil chegou tarde nesta corrida. Nos anos 1980 ainda estávamos lutando contra a crise financeira do Estado, a dívida externa e a hiperinflação; não havia tempo nem energia para pensar em mudança de paradigma industrial. Todos os vícios do modelo de substituição de importações permaneceriam presentes por mais algum tempo, especialmente um mercado super fechado às importações, mas já no início dos anos 1990 algo começou a mudar. A tímida abertura comercial forçou as empresas brasileiras a olharem para o que estava acontecendo no mundo. O Plano Real ajudou a compor a mudança, pelo controle da inflação e pela enorme massa de produtos importados que invadiram o país, a âncora dos preços domésticos com dólar barato. As novidades começaram a parecer com certa velocidade e muitas empresas ineficientes que antes só sobreviviam escondidas no ambiente de grande inflação sucumbiram; muitas fecharam ou foram compradas por concorrentes estrangeiras.

Lembro de um episódio específico sobre o tema da adaptação ao novo paradigma de produção. A tradicional empresa de eletrodomésticos da marca Arno, liderada pelo empresário que fez do seu sobrenome a marca, no velho estilo dos chamados “capitães de indústria”, resistiu a desfazer seu processo de verticalização, em que produzia muitos componentes de seus produtos finais. O Sr. Arno dizia com orgulho que não iria aderir ao novo modelo, porque achava absurdo perder o controle sobre o fornecimento – quantidade e instantaneidade – e a qualidade dos componentes. Lhe parecia muito arriscado terceirizar etapas tão delicadas do seu processo produtivo. A vantagem representada pelos custos menores da terceirização, com abastecimento deslocado não só para fora da empresa, mas até mesmo para países muito distantes, não lhe parecia suficiente para abrir mão do controle.

Com o tempo, seus concorrentes nacionais não só cederam à terceirização, como chegaram mesmo a desistir de produzir no Brasil e passaram a contratar no exterior a manufatura de sua linha de produtos, mantendo apenas suas marcas e seus canais de distribuição. A China e seus vizinhos orientais passaram a produzir quase tudo e o tema da desindustrialização ganhou cada vez mais destaque nos debates sobre a economia brasileira.

A globalização avançou muito desde a virada do século, fazendo com que a produção industrial fosse amplamente desmembrada, com várias etapas de um produto espalhadas pelo mundo. A velha lógica capitalista da busca pela redução de custos se difundiu e imperou, mas valia a pena estar sempre alerta de que seu sucesso dependia de não haver entraves nos sofisticados circuitos internacionais de abastecimento e nos canais de transporte. O bom funcionamento do modelo dependia de uma máquina bem azeitada e sem percalços, baseada na política de estoques mínimos e suprimento just in time.

Uma nova etapa da história veio com a pandemia. A parada obrigatória de muitas atividades em diferentes partes do mudo desarticulou o sistema bem montado e, como agravante, houve a coincidência de alguns eventos críticos no início de 2021: problemas com fábricas de semicondutores no Japão, em Taiwan e nos EUA, e um acidente com um supercargueiro no Canal de Suez. O sinal de alerta acendeu. A mudança do perfil de consumo de bens eletroeletrônicos – em especial os computadores e similares –, em função da necessidade de trabalhar e estudar em casa, só tornou o problema da falta de chips ainda maior.

O fato é que a pandemia trouxe para o debate algumas vulnerabilidades do modelo e não há dúvida de que o cenário da globalização industrial mudou desde o início de 2020. Tais vulnerabilidades sempre foram óbvias, mas nunca haviam se manifestado com tanta força. Os especialistas passaram a discutir a necessidade/possibilidade de se reorganizarem as cadeias produtivas. Talvez a principal mudança seja a montagem de redes de fornecimento de componentes mais próximas geograficamente e, portanto, mais seguras. Seria uma troca, em que a busca pura do custo baixo perderia o protagonismo. O que diria o Sr. Arno de tudo isto? Estamos na fase de transição com três soluções possíveis: (1) uma radical volta atrás; (2) a transição para uma nova etapa, com novos arranjos regionais de suprimentos; ou (3) somente um aperfeiçoamento do modelo, com diversificação de fornecedores, para diluir o risco. A opção radical parece pouco provável. Tenho sérias dúvidas sobre a construção de redes regionais, até porque muitos componentes não podem ser produzidos em qualquer lugar, pois dependem de muitas condições especiais, como transferência de tecnologia e grande escala. Fico com a sensação de que é só uma questão de tempo para a força da redução de custos se impor, com os naturais aperfeiçoamentos que um fenômeno como a pandemia trouxe. O caso do Brasil é mais difícil de equacionar, pois continuamos correndo atrás dos acontecimentos, agora discutindo somente a sobrevivência do que sobrou da indústria nacional e quais os caminhos para se encaixar no movimento mundial e tentar uma retomada.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora