Opinião
|
10 de abril de 2022
|
12:36

Crise econômica capitalista como causa subjacente da guerra entre Rússia e Ucrânia (por Ricardo Dalthein)

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Agência Tass
Foto: Agência Tass

Ricardo Dathein (*)

Investigar as bases econômicas do atual conflito entre Rússia e Ucrânia ajuda a entendê-lo, pois o mesmo reflete também problemas específicos do capitalismo presente. O choque mais amplo, “leste versus oeste”, parece ter sido exponenciado pela realidade econômica atual. Mas também é reflexo da forma como se deu o fim da União Soviética, com a técnica de destruição massiva das estruturas existentes e sua substituição por um ultra liberalismo, realidade que a China sabiamente conseguiu evitar. Ou seja, mais de 30 anos depois do colapso e da década de humilhação dos anos 1990, o capitalismo que lá se implantou não correspondeu aos anseios de dinamismo econômico e social, cobrando atualmente seu preço.

Depois da crise dos anos 1970 e 1980, com redução de rentabilidade, os Estados Unidos conseguiram recuperar a taxa de lucro de sua economia via o Neoliberalismo, cujo papel foi justamente recobrar essa rentabilidade via concentração de renda, depois de décadas de políticas socialdemocratas. Ao mesmo tempo, houve um avanço importante de inovações, cujo maior símbolo é a informática. No entanto, desde 1998 a taxa de lucro voltou a se reduzir tendencialmente, com pequenas e insuficientes recuperações cíclicas (EPWT). Até hoje, depois de mais de duas décadas, o capitalismo estadunidense não conseguiu retomar sua rentabilidade, de forma que os problemas atuais são também reflexo disso. Ou seja, a economia dos EUA tornou-se menos produtiva. Ao contrário, tornou-se mais improdutiva, o que se expressa pelo fenômeno da financeirização, o que exige maior concentração de renda. Além disso, mais recentemente, ela tem se tornado crescentemente destrutiva. Assim, há uma base econômica para o comportamento belicista dos EUA.

Essa queda de rentabilidade de longo prazo, que ocorre também em vários países importantes (como Japão, Alemanha, França e Grã-Bretanha), juntamente com a estagnação do ritmo do comércio internacional, deve ser a causa subjacente das crises econômicas e dos conflitos geopolíticos do século 21, com aumento do nacionalismo e do protecionismo. Esses movimentos sacrificam os interesses empresariais de curto prazo à geopolítica, com grande ampliação de ações tipicamente imperialistas.

Agora, parece que estamos em um novo período de estagflação (como nos anos 1970), ainda na fase de piora, sem soluções à vista. Há importantes conflitos sobre as bases energéticas, sobre o controle das cadeias globais de valor e sobre as redes de pagamentos e o controle da moeda hegemônica no mundo. A chamada “ordem baseada em regras”, que é efetivamente uma “ordem baseada em regras dos EUA”, precisa ser imposta cada vez com mais violência e ameaças, o que é a demonstração típica de crise hegemônica.

Para a Rússia e a Ucrânia, depois do colapso dos anos 1990, houve uma recuperação parcial de rentabilidade até 2007/08, provavelmente derivada do boom de commodities. No entanto, depois disso, suas taxas de lucro pararam de crescer, ficando em 2019 em um baixo patamar, de cerca de 5% para a Rússia e de apenas 2% para a Ucrânia (EPWT).

A taxa de investimentos, que indica o potencial de crescimento da economia, como média de 2010 a 2021, foi de 23% na Rússia e 17% na Ucrânia, com tendência de queda desde 2008 para esse último país (FMI). Ou seja, há fortes problemas econômicos, mas a Rússia tem se recuperado mais que a Ucrânia.

Com base nessa evolução das taxas de lucro e das taxas de investimento, enquanto, comparativamente, o estoque de capital dos EUA cresceu 75% de 1990 a 2019, esse volume de capital ainda é, no último ano, inferior ao ano inicial para Rússia (-2%) e Ucrânia (-23%). Depois de 2010, até 2019, o estoque de capital dos EUA cresceu 13%, o que é pouco. Mas, para a Rússia, elevou-se apenas 5%, e na Ucrânia reduziu-se 9% (EPWT). Ou seja, esses países, mas muito mais a Ucrânia, com o golpe de 2014, já estavam antes da pandemia e da guerra em situação econômica muito ruim.

O neoliberalismo extremista implantado no leste europeu gerou forte concentração de renda e riqueza, com desestruturação econômica e social, além de decomposição política, abrindo espaço para governos de direita. Esses capitalismos de baixo dinamismo produzem tensões crescentes e tendem a ser cada vez mais predatórios e conflitivos, interna e externamente.

O índice de desigualdade de Gini (quanto mais próximo de 100, mais concentrada é a renda) da Rússia foi de 37,5 (2018) e de 26,6 na Ucrânia (2019) (Banco Mundial). No entanto, esse indicador pode estar muito subestimado, por problemas de medição, e está em contradição com os dados do World Inequality Database. Nessa base não há números para a Ucrânia. No caso da Rússia, a desigualdade de renda determinada pelo mercado (antes dos impostos) indica que em 2021, no topo, 1% da população se apropriava de 21,4% do total da renda, os 10% do topo recebiam 46,4% e os 50% da base recebiam apenas 17,0% da renda. Comparativamente, em 1989 esses números eram, respectivamente, de 5,6%, 24,7% e 27,3%, mostrando a forte concentração de renda que ocorreu com o fim da URSS.

Para a desigualdade de riqueza, a concentração na Rússia é ainda maior. Em termos líquidos, o 1% mais rico da população se apropriava de quase metade da riqueza (47,7%), os 10% mais ricos, quase três quartos (74,1%), enquanto os 50% mais pobres detinham apenas 3,1% da riqueza nacional. Também aqui ocorreu enorme aumento com o fim da URSS, mas, mesmo depois do ano 2000 a riqueza continuou se concentrando de forma muito intensa.

Existe, para a Rússia, assim como para a Ucrânia, um grande desperdício de recursos com os chamados “oligarcas” (assim como ocorre com os mesmos no Brasil e nos EUA), os quais, ao invés de promoverem investimentos produtivos em seus países, desperdiçam os recursos (o excedente) gerado internamente com luxos no exterior.

Essa realidade de forte concentração de renda e de riqueza foi produzida, em um primeiro momento, pelo processo de acumulação primitiva de capital dos anos 1990. Posteriormente, com a desestruturação econômica e, portanto, social. Ou seja, países com grande volume (relativamente ao PIB) de produção e exportação de commodities (petróleo, gás, minérios, produtos agrícolas etc.) tendem a gerar concentração de renda e riqueza, pois criam poucos empregos, e ainda menos bons empregos. Portanto, existe espaço para poucos nessa estrutura econômica. As classes empresariais nacionais se acomodam à produção de commodities, que gera altos lucros e forte acumulação de riquezas. Nesse contexto, produzir algo mais sofisticado, que exige esforços inovativos, não é atraente. Assim, a alternativa necessária é o planejamento estatal, via um projeto da sociedade.

Um indicador importante para ponderar o potencial de crescimento econômico, de desenvolvimento tecnológico e de bem-estar social de um país é a evolução da estrutura econômica dos países. Segundo o Atlas da Complexidade Econômica, entre os anos 2000 e 2019 essa complexidade (a qual mede a diversificação e a sofisticação produtiva e exportadora) reduziu-se fortemente tanto para a Rússia quanto para a Ucrânia. Com isso, a Rússia passou da 28ª posição para a 52ª no ranking mundial de complexidade, enquanto, entre os mesmos anos, a Ucrânia passou da 33ª para a 47ª posição.

Em relação à participação da indústria manufatureira no PIB, outro indicador importante para o desenvolvimento econômico e social, constata-se que a Ucrânia tinha um produto industrial significativo, proporcionalmente ao PIB maior que o da Rússia. Depois da crise dos anos 1990, houve certa recuperação dessa participação, até 2007. Os dois países foram negativamente afetados pela crise de 2008/09, mas depois disso seguiram trajetória opostas. Enquanto a Rússia conseguiu recuperar a participação da indústria de 12,9% do PIB em 2009 para 15% em 2020, na Ucrânia a participação nos mesmos anos reduziu-se de 17,4% para 13,5%. Por outro lado, a participação da Rússia e da Ucrânia na produção manufatureira mundial, entre os anos de 2000 e 2020, reduziu-se, respectivamente, de 1,7% para 1,4% e de 0,2% para 0,1%. Para efeitos de comparação, em 2020 esses valores eram de 1,3% para o Brasil, 16,6% para os EUA e de 30,1% para a China (United Nations Department of Economic and Social Affairs).

Um país como a Rússia, que pretende exercer forte influência além de suas fronteiras, precisa ter muito a oferecer. No entanto, uma economia com cada vez menor complexidade não produz oportunidades e estímulos para seus vizinhos. Muito ao contrário da China, por exemplo. Assim, pode-se entender que, sendo os países da Europa ocidental muito mais complexos, são mais atraentes para os países do leste europeu do que a Rússia.

Talvez a Rússia possa reagir às sanções, que não deixam de ser uma forma de protecionismo, com substituição de importações ou de serviços abandonados. O próprio mercado ou ações governamentais podem fazer isso. Ou também com a vinda de empresas estrangeiras como, por exemplo, da China. E talvez a Rússia, após a guerra, seja mais intervencionista e seletiva com o capital externo, ou cobre pelos prejuízos causados. E quiçá possa aproveitar o contexto de ruptura para impor à sua classe dominante um projeto de mudança estrutural e social. Em um novo mundo multipolar, onde a China funciona como polo exemplar para a Rússia, essa não deixa de ser uma possibilidade. Quanto à Ucrânia, apesar de seu desejo de ser aceita pela Europa ocidental, talvez também encontre na China seu melhor parceiro econômico, tendo em vista o tratamento oportunista e predador recebido até aqui do ocidente.

(*) Ricardo Dathein é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora