Opinião
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22 de março de 2022
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13:37

Miúdas reflexões sobre a guerra (por Carlos Frederico Guazzelli)

Foto: Stringer/TASS
Foto: Stringer/TASS

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda (Mia Couto).

Costuma-se dizer que, nas guerras, a primeira vítima é a verdade. Na verdade – com o perdão da redundância – esta é a segunda vítima da guerra: a primeira é, sempre, a razão. O conflito armado dá-se, primeiro, pela abolição de qualquer alternativa racional à decisão por sua adoção. Morre, pois, antes a razão, e depois a verdade – no sentido de que os contendores mentem, ou omitem, ou exageram, ou minimizam os fatos desastrosos que, necessariamente, acompanham ou resultam dos combates que travam.

Não se esqueça, porém, que antes, muito antes das vítimas abstratas das guerras, há os mortos e feridos concretos – pessoas, seres humanos reais, que perdem seu bem maior, a vida, ou sua saúde e integridade física e psíquica. E suas honras, suas pequenas liberdades, seus afetos básicos; sem falar nas coisas e valores essenciais à vida, seus trabalhos, suas casas e suas cidades. Morrem concretamente, também, sempre, pouco ou muito, a natureza, o ambiente – a água e o ar são poluídos, a terra é estuprada, asfixiada, torturada.

Por isso, o verso de Léon Gieco é tão preciso e doloroso, quando aponta que a guerra “…es um monstruo grande que pisa fuerte la pobre inocencia de la gente…”

Há outra afirmação corrente, atribuída a diferentes autores, segundo a qual a guerra seria a substituição da política por outros meios. Parece, no entanto, ser justamente o contrário. Tanto lógica quanto historicamente, a guerra – isto é, a imposição do poder pela força bruta – precede a construção de consenso e coerção legítimos, pelas vias do convencimento e do acordo. Ou seja, a política – e a diplomacia, que é sua versão nas relações externas entre Estados e Nações – substituíram historicamente a guerra, como forma de solução de conflitos de interesses. 

 Mas tal substituição, sabemos bem, é sempre difícil e precária, ao ponto de parecer provisória: numa visão cética, não haveria paz real e efetiva entre os homens – mas apenas armistícios e tréguas…

 Além de causar a morte e o infortúnio de suas vítimas diretas e indiretas – na maioria dos casos, senão sempre, entre a população civil; e de violar a razão e fulminar a verdade, as guerras produzem, também, a destruição do direito – como ideia e prática civilizatórias. O triunfo da “lei do mais forte” sobre a tentativa de fazer justiça baseado na razão, atesta sempre, em qualquer conflito armado entre, ou dentro dos países, a falência do direito internacional, contingência decorrente, aliás, de sua impotência constitucional, por assim dizer. 

 É que, ao contrário do que ocorre no plano do chamado “direito interno” – o ordenamento jurídico que, no âmbito do território de cada Estado, e em relação aos seus habitantes, consagra o monopólio do uso legítimo da força – o denominado “direito das gentes”, embora constituído de um corpo normativo de aparência jurídica – leis, tratados, convenções – é destituído do poder sancionador que lhe garanta efetividade. Ou, dito de outra forma, este conjunto de regras jurídicas internacionais serve, no plano duro da realidade, não mais do que como recomendações aos Estados-membros da comunidade internacional, que as seguem, negam ou interpretam de acordo com seus próprios interesses – sem que os órgãos supranacionais disponham de meios coercitivos capazes de tornar efetivos seus comandos e proibições. São, pois, regras sem sanção, sem poder coercitivo; e há quem duvide, inclusive, por isso, de seu caráter propriamente jurídico – ao contrário do que se dá no nível interno de cada país.  

O conflito atual, no leste europeu, envolvendo a Rússia e a Ucrânia, é um exemplo notável dessa impotência genética do direito internacional, como instrumento de prevenção e mediação de disputas entre Estados, e de efetivação da paz mundial – seus proclamados objetivos principais. Isto porque, sem desconsiderar a ilegalidade manifesta da invasão, pela força, do território de outro país, ordenada por uma liderança política autocrática e conservadora – que nada tem de comunista, ou esquerdista, como sugerido e, até mesmo declarado por expressiva parcela da mídia corporativa ocidental – é inegável que, em várias oportunidades, inclusive há pouco tempo, foram firmados documentos formais estabelecendo a cessação do processo de alastramento da OTAN no rumo das fronteiras russas.   

A começar, nos próprios tratados que acompanharam ou sucederam imediatamente a dissolução da União Soviética; e depois, em 2005 e mais recentemente em 2014 – em tratado firmado entre a Ucrânia e a Rússia, com a chancela expressa de França e Alemanha, o qual, desde então, vem sendo sistematicamente desconsiderado pelos ucranianos, dedicados a bombardear e atacar, com armamento fornecido pelos EUA e União Européia, os rebeldes autonomistas e a população civil, majoritariamente de origem russa, em Donetz e em Lugansk, causando a morte de mais de 16.000 pessoas.

Há outro fator que contribui para a inocuidade das normas destinadas à prevenção e mediação de conflitos de interesse entre os países – a desigualdade formal (“jurídica”)  entre eles. 

 É oportuno lembrar que a “isonomia” – isto é, a igualdade jurídica entre as pessoas – constitui o aspecto essencial da cidadania e, por isso mesmo, consiste em princípio vigente no direito de todos os países ditos civilizados. Sem ignorar as notórias diferenças, de ordem natural ou cultural, social ou econômica, entre os seres humanos – ao contrário, sempre atentando à sua diversidade – o preceito da igualdade jurídica entre eles significa que tais diferenças não podem importar em tratamento legal diferenciado – a não ser, é claro, para garantir os direitos decorrentes de suas peculiares condições pessoais (crianças, adolescentes, idosos, enfermos, indígenas, etc). Dito de outra forma, a abolição de status jurídicos diferenciados entre as pessoas, é da essência mesma do conceito de cidadania: cidadão, cidadã, por excelência, é igual em direitos e deveres.

Evidentemente, convém reiterar que a atribuição de “igualdade perante a lei” (isonomia) não implica, “ipso facto”, o fim das desigualdades – que, infelizmente, ainda caracterizam a ampla maioria da população mundial. Mas a inexistência de condições jurídicas diferenciais conforme a classe social, a origem étnica ou a religião, por exemplo, importa em um avanço civilizatório extraordinário, por influência do Iluminismo e principal herança das grandes Revoluções liberal-burguesas dos séculos XVII e XVIII, sobretudo da Francesa.

Pois, lamentavelmente, ao contrário do que acontece no plano do direito interno dos países contemporâneos – ou de boa parte deles, ao menos – no nível internacional consagra-se a desigualdade “jurídica”, isto é, formal, entre os membros da comunidade das Nações, reunida na sua principal organização, a ONU. 

Nesta, há países “mais iguais” que os demais: são eles os cinco membros permanentes de seu principal órgão, o Conselho de Segurança – a saber: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. A estes cinco Estados, tão somente, reserva-se o “direito de veto” às Resoluções da Organização, mesmo oriundas de sua Assembléia-Geral.

À toda evidência, tal consagração formal do poder incontrastável das principais potências do Planeta – derivada exclusivamente de seu poderio militar, econômico e político – a par de legitimar previamente sua condição de dominantes na órbita internacional, inviabiliza na prática a efetivação das regras enunciadas pela própria ONU, visando à prevenção e mediação dos conflitos – do que a presente guerra entre a Ucrânia e a Rússia, é mais um eloquente exemplo.

No entanto, da impotência do sistema normativo internacional, não se segue sua irrelevância absoluta: o mundo, sem a ONU e os demais órgãos internacionais – sobretudo a UNESCO, a UNICEF, a FAO, ACNUR e outras – seria pior e mais inseguro ainda. Mas é preciso relativizar sua importância e denunciar o caráter retórico e demagógico de muitas de suas ações e decisões – como ocorre, por exemplo, neste momento, com a condenação seletiva e unilateral da Rússia pelo conflito armado com a Ucrânia, sem que a ONU nada fizesse em relação às recentes invasões e bombardeios praticados, pelos EUA e pela OTAN, no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria, com grandes e irreparáveis perdas humanas, sobretudo entre as populações civis destes países. Sem falar nos criminosos bombardeios da própria Aliança Atlântica na Iugoslávia, na década de 1990; e na escandalosa omissão da ONU diante do massacre ora em curso no Iêmen, de parte da Arábia Saudita, armada e apoiada pelos norte-americanos e europeus. 

Ao encerrar estas despretensiosas notas, é preciso referir outra das vítimas “abstratas” das guerras – e desta, em particular: a inteligência, insultada diuturnamente pela ideologia maniqueísta veiculada pela mídia oligopólica ocidental, que incensa seus falsos heróis e detrata seus vilões preferidos, ao sabor dos interesses do poder financeiro, político e militar do Império.

(*) Defensor Público aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014) 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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