Opinião
|
17 de março de 2022
|
08:06

Conflito na Ucrânia rearranjou o debate sobre inflação no Brasil (por Flavio Fligenspan)

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Flavio Fligenspan (*)

Há um ano começava no Brasil um ciclo de elevação da taxa de juros básica da economia, determinada pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), do Banco Central. Entre a metade de 2019 e a metade de 2020 o COPOM havia seguido um caminho de redução da taxa, de 6,5% ao ano para 2% ao ano. Tal redução estava de acordo com o ritmo lento da economia brasileira e servia de estímulo à atividade, mesmo antes da chegada da pandemia. Esta taxa bem baixa para o padrão brasileiro (2% ao ano) durou cerca de oito meses, até que em março de 2021 a taxa começou um caminho firme de elevação, chegando a 10,75% em fevereiro de 2022.

Nestes últimos 12 meses muito se discutiu se havia sentido nesta alta dos juros, cujo efeito é restringir a demanda, já que estávamos diante de uma economia super fragilizada pela pandemia e pela falta de renda das famílias que enfrentavam o desemprego e a própria inflação. Estava claro que a inflação era causada por fatores ligados à oferta – preços das commodities, taxa de câmbio e crise energética – e não à demanda. Mas o sistema de metas de inflação usado pelo Brasil não dá margem a esta discussão simples; se a inflação projetada para o fim do ano está acima da meta estipulada anteriormente, é preciso subir os juros. Não importa se a queda do PIB causada pela recessão de 2014 ainda não tenha sido recuperada, que o desemprego atinja 12 milhões de pessoas, que as pequenas empresas não consigam pagar os empréstimos emergenciais tomados no auge da pandemia e que as famílias estejam se endividando e sacando recursos da poupança para comprar bens de primeira necessidade. O modelo manda subir os juros.

A invasão da Ucrânia pela Rússia, no fim de fevereiro, rearranjou o debate ao desencadear forças que alteram as projeções da inflação e do PIB brasileiro em 2022 e também em 2023. Sem dúvida, diante de um conflito que afeta indiretamente todo o mundo, as forças que levam a uma previsão de aumento da inflação e de redução da atividade são mais intensas que as de sentido contrário.

Vejamos assim: aumentos de preços das commodities – grãos, petróleo e gás – e de insumos industriais que têm a Ucrânia e a Rússia como fornecedores de peso, como matérias primas para a produção de chips; aumento de fretes marítimos, dificuldades logísticas no comércio internacional; maiores barreiras protecionistas; todas são variáveis que levariam a um aumento da inflação no Brasil e colaborariam para um PIB mais fraco. Para tornar as coisas mais difíceis, a combinação de excesso de chuva em algumas regiões brasileiras e estiagem forte em outras, neste início de ano, frustraram safras agrícolas e também devem jogar a favor de mais inflação e menos PIB. Por outro lado, o isolamento econômico da Rússia abre alguns espaços comerciais para produtos brasileiros no exterior, como no caso do aço, o que incrementa a produção e as exportações, mas é pouco.

A taxa de câmbio é uma variável especial. A teoria e a tradição dizem que o real deve se valorizar diante de uma alta de preços das commodities exportadas pelo Brasil, já que as vendas externas aumentam a entrada de dólares no Brasil. Seria este o caso atual, mas observe-se que não foi isto que ocorreu em 2020/2021, pois outras variáveis atuaram com força em sentido contrário. Neste período, houve saída líquida de recursos estrangeiros do País, mesmo com alta de preços das commodities, seja por falta de confiança, por desorganização política do Governo, por frustração quanto ao crescimento e pelo Governo não ter entregue muito do que havia prometido na economia, tanto na área fiscal como no que se refere às chamadas reformas.

Não se sabe o que vai acontecer com a taxa de câmbio nos próximos meses, aliás nunca se sabe. Até ocorreu um movimento de entrada de dólares no Brasil e valorização do real neste ano e o início da guerra não chegou a reverter completamente este movimento. Um dos motivos é que a taxa de juros no Brasil agora está muito alta e isto atrai capital, ainda que de curto prazo; outro é o fato de que as empresas brasileiras produtoras e exportadoras de commodities certamente vão se beneficiar do cenário pós conflito e isto atrai capital para a Bolsa. Mas não há certeza de que estes movimentos perdurem nos próximos meses e se o câmbio cair pouco, não de forma suficiente a compensar o aumento de preços das commodities, ou mesmo subir, o efeito será inflacionário.

O COPOM, na sua decisão de 16 de março, apostou nas forças que puxam a inflação para cima, tanto em 2022 como nos seus efeitos defasados para 2023, apesar das manifestações de vários segmentos da sociedade sobre quão inadequado seria aumentar os juros diante de um cenário tão frágil do nível de atividade. Para quem acredita fielmente no modelo de metas de inflação, a alta de um ponto percentual dos juros ainda se justificaria pela necessidade de não se perder “a batalha das expectativas”. E a forma de mostrar força nesta “batalha” é elevar a taxa de juros, a despeito dos milhões de prejudicados pela medida. A propósito, não se deve esquecer que a legislação que atribuiu independência ao Banco Central lhe obrigou a perseguir dois objetivos: a estabilidade da moeda, mas também a amenização do ciclo econômico.

Além de elevar a taxa de juros para 11,75% ao ano, o COPOM ainda explicitou em seu comunicado que não hesitará em fazer novos aumentos nas próximas reuniões, sempre priorizando o combate a uma inflação que ele mesmo reconhece não ser causada por forças de demanda. Assim reza a cartilha. O fato é que há pouco tempo muitos analistas do mercado financeiro acreditavam que estávamos prontos para começar um ciclo de baixa da taxa de juros neste início de 2022, e agora, depois da invasão da Ucrânia, estamos nitidamente seguindo o ciclo de alta que começou em março de 2021.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora