Opinião
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12 de março de 2022
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08:44

A reorientação estratégica da Petrobras e a Guerra na Ucrânia: o caso dos fertilizantes (por Fernando Maccari Lara e Ricardo Leães)

Fertilização agrícola no Brasil ficou ameaçada pela guerra na Ucrânia [Pixabay]
Fertilização agrícola no Brasil ficou ameaçada pela guerra na Ucrânia [Pixabay]

Fernando Maccari Lara e Ricardo Fagundes Leães (*)

Dada a vigência de uma avassaladora onda neoliberal no país, trata-se de algo absolutamente incomum encontrar narrativas centradas em alguma noção de que recursos como a terra, os minerais, os ativos públicos, etc. devam ser geridos de acordo com alguma perspectiva estratégica, a partir de interesses nacionais. Isto se demonstra em diversos contextos e formas específicas mas, de maneira geral, o senso comum reza atualmente que todos estes elementos devam servir, em primeiro lugar, a uma lógica de acumulação privada. No debate público não se costuma tolerar que a ênfase da análise possa ser em interesses de natureza nacional, coletiva. Tal perspectiva é frequentemente associada a algo retrógrado, ultrapassado.

Os desdobramentos da invasão da Ucrânia pela Rússia têm, entretanto, trazido à pauta algumas questões importantes a respeito do papel da Petrobrás e de algumas das transformações que vem sofrendo a estrutura produtiva brasileira, em função da orientação da política de (des)investimento da estatal. A política da empresa encontra-se, de um modo geral, bastante alinhada ao que se observou no parágrafo anterior, pautada por objetivos muito mais voltados à rentabilidade e à distribuição de dividendos do que por qualquer preocupação com os interesses da população em geral ou por alguma função especial que ela pudesse ter em alguma estratégia de desenvolvimento.

Uma das expressões mais contundentes desta circunstância é a pouca oposição mais efetiva à política de definição dos preços dos combustíveis a partir de uma paridade com os preços internacionais. Ainda que, na prática, já ao longo do ano passado as intensas flutuações dos preços do petróleo e da taxa de câmbio tenham obrigado a Petrobrás a não executar imediatamente o repasse aos preços domésticos, não é este o discurso e nem a orientação oficial. De acordo com a visão que tem predominado não só no governo mas também no debate público, não seria função da empresa qualquer atuação como elemento de amortecimento para os preços internos dos combustíveis. O fundamental seria garantir a rentabilidade e dividendos aos acionistas. Se isto requer sempre repassar enormes elevações de preços de petróleo e taxa de câmbio para os preços domésticos, então é basicamente isto que deve ser feito.

Entretanto, tal concepção em um setor tão fundamental como o do refino de petróleo, em contexto de forte alta de preços externos e câmbio, tem gerado importantes conflitos com outras circunstâncias domésticas. Podemos citar a evidente pressão que esses fatores têm exercido sobre a inflação e o poder de compra dos assalariados e trabalhadores informais, sobretudo dos mais pobres. Trata-se de um elemento importante na explicação sobre por que a dinâmica do consumo e a recuperação da atividade econômica estejam tão aquém das expectativas. Um outro exemplo que tem estado presente nos últimos anos é a pressão de custos sobre o setor de transporte, acarretando frequentes episódios de tensão entre caminhoneiros e governo, bem como a greve que paralisou o país por alguns dias em 2018.

Evidentemente que são múltiplos os graus em que estes conflitos são simplesmente ajustados por perdas no lado mais fraco ou em que são sentidos como relevantes a ponto de mobilizar o governo para buscar outras medidas visando estabelecer compensações. No caso dos efeitos dos preços de combustíveis e do gás de cozinha sobre o poder de compra da população, os efeitos são mais difusos. Nesse caso, para um governo tão pouco comprometido com as condições de vida da população em geral, parece que a situação precisa chegar a um nível mais crítico para que haja alguma atitude, como explicita a recente decisão de estabelecer o pagamento de um auxílio-gás para a população de baixa renda. Nas situações que envolvem os caminhoneiros, por sua vez, parece maior a disposição do governo para, desde o seu início, buscar constantemente atender demandas da categoria, especialmente em momentos de maior pressão advinda dos preços dos combustíveis.

Isso posto, podemos situar o recente incômodo com os desdobramentos da guerra entre Rússia e Ucrânia. Têm aparecido reiteradamente na mídia convencional as preocupações de setores do agronegócio em relação à dependência brasileira de fertilizantes russos e à indisponibilidade dos mesmos, em função dos conflitos e sanções recentes que envolvem aquele país. Nota-se que, de fato, a questão é central para o Brasil, quarto maior produtor e segundo maior exportador de grãos do mundo, sendo soja, açúcar, milho e café os principais itens. Da mesma forma, o país também é um dos principais exportadores de carne bovina e frango, colocando seu agronegócio em uma condição ímpar entre seus pares no comércio internacional.

Apesar dessa pujança, contudo, observa-se que o agronegócio brasileiro carece de fertilizantes adequados para manter sua produtividade, sobretudo na região do Cerrado. Como o solo desse bioma é pobre em termos de nutrientes, faz-se imprescindível a utilização de fertilizantes, como nitrogênio, fósforo e potássio, fundamentais para a nutrição das plantas. Nesse cenário, o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes no mundo, e o maior importador desses produtos.

Já houve um tempo, nem tão remoto, em que o Estado brasileiro ainda buscava desenvolver a capacidade de produção de fertilizantes, por meio da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN) da Petrobras. A partir de 2016, entretanto, essa situação mudou bastante. Com a política de desinvestimento da Petrobras, venderam-se três unidades – inclusive para uma empresa russa – e decidiu-se pelo fechamento de uma fábrica de fertilizantes. Em função dessas medidas, hoje, 85% dos fertilizantes utilizados são importados, sendo a Rússia um dos principais fornecedores. Das importações brasileiras a partir daquele país, 62% são fertilizantes.

Assim o que temos é uma combinação entre uma característica da estrutura produtiva doméstica, qual seja a dependência de fertilizantes importados, com uma circunstância externa específica mas com potencial para vir a durar bastante tempo, que são os conflitos e sanções que dificultam o comércio e o acesso a esses insumos a partir da Rússia. Talvez seja exagero afirmar que absolutamente nada disto estaria acontecendo não fossem as medidas de desinvestimento da Petrobras a partir de 2016. Algumas das iniciativas dos anos 2000 podem ser vistas na realidade como tímidas tentativas de retomar uma orientação de política industrial, abandonadas desde a década de 1980. De modo geral, pode-se dizer que tais tentativas não foram suficientes para reverter a tendência de fragilização da estrutura produtiva que vem desde os anos 1990. Mas ainda assim, não tivessem sido interrompidas tais iniciativas, a exposição a riscos dessa natureza poderia ser menor. De modo que uma decisão como a de desinvestir em atividades de produção e desenvolvimento de insumos para o setor agropecuário, consequência da orientação pela rentabilidade e distribuição de dividendos da Petrobrás, deixou uma outra atividade mais exposta a fatores exógenos e incontroláveis.

Vê-se que o assunto é interessante também porque podemos dizer com bastante segurança que os empresários do Agronegócio são um dos pilares importantes de sustentação do atual governo e assim que, indiretamente, também apoiam a política da Petrobrás. Trata-se então de uma contradição? De certo modo, sim. Mas é preciso observar que, conjunturalmente, tal condição pode mesmo trazer vantagens para o setor privado, transformando-se em um problema quando o cenário se modifica. A rigor, a preocupação maior das traders do agronegócio é o custo dos insumos, e não a sua origem. Se o mercado internacional oferecer fertilizantes importados mais baratos, esses grupos se mostram satisfeitos. Ou seja, para o produtor privado o problema mais importante é o custo e/ou, no limite, a disponibilidade mesma dos insumos. Em tempos menos incertos, o problema não aparece. Mas o atual contexto internacional acabou estabelecendo, de fato, certa contradição entre duas fontes de acumulação privada hoje muito importantes para o capitalismo neoliberal brasileiro.

Salienta-se, além disso, que as estruturas de fertilizantes foram vendidas para empresas de origem russa. Elas tinham interesse nessas fábricas porque aquele país é um grande exportador de gás natural, hidrocarboneto a partir do qual se extrai o nitrogênio para a produção de fertilizantes nitrogenados. De um ponto de vista das relações externas, portanto, a opção neoliberal constitui facilidade para quem tem, ao contrário de nós, visão mais estratégica. Por sua vinculação com as economias centrais, há uma preocupação para que o Brasil não se torne competidor no setor de fertilizantes, consolidando nosso lugar de tão-somente um produtor de grãos no comércio mundial. Para quem não quer que o Brasil se torne um competidor em qualquer coisa que seja, portanto, é positivo que aqui se pense que não é preciso fazer nada além de respeitar o mercado e garantir rentabilidade para negócios privados.

Chegamos a 2022, portanto, nesse paradoxo. Apesar de grandes produtores de grãos, o Brasil não tem condições de produzir os insumos básicos para seu agronegócio, e os conflitos externos tornaram mais difícil e custosa sua obtenção. Tanto a defesa dos lucros do agronegócio quanto a adesão incondicional à política de distribuição de dividendos pela Petrobrás vêm sendo importantes pilares de sustentação política do atual governo, mas a conjuntura pode colocar em conflito essas fontes de acumulação privada. No degradado contexto do debate político brasileiro as “soluções” encaminhadas também não tem porque resultar em algo positivo, como é visivelmente o caso do projeto colocado em discussão para flexibilizar a mineração em terras indígenas. De modo que a situação é uma boa ilustração da dinâmica nociva do capitalismo neoliberal. Ao invés de buscar objetivos coletivos, só interessa a acumulação privada. Ao invés de buscar reduzir a exposição a riscos para que a atividade econômica ocorra sem maiores sobressaltos, produz-se o exato oposto. E sob o calor das recorrentes crises geradas por esse estado de coisas, aprofunda-se o caráter desordenado e predatório da exploração dos recursos existentes.

(*) Fernando Maccari Lara é Doutor em Economia pelo IE-UFRJ. Ricardo Fagundes Leães é Doutor em Ciência Política pelo IFCH-UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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