Opinião
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23 de fevereiro de 2022
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15:12

Xs gauchxs do futuro: representações de gênero e de tradição (por Clarissa Ferreira)

Foto: Sebastián Freire
Foto: Sebastián Freire

Clarissa Ferreira (*)

Tradição tem a ver com construção de conhecimento, com sabedorias adquiridas. O compartilhamento desses saberes faz com que ela, a tradição, aconteça.  Nesses ensinamentos são passadas formas de viver e existir. Movimentos, jeitos, comportamentos, modos de ser e pertencer, que ficam muitas vezes no empírico, no sutil, mas que tecem a rede do que é observado e aprendido. Esse texto fala sobre como nos tornamos homens e mulheres, como aprendemos gênero e como podemos pensar em desaprender. 

Se vocês já acompanham as discussões que trazemos no Gauchismo Líquido, certamente já pensaram como as convenções  impostas,  dentro do que se compreende como Tradicionalismo no Rio Grande do Sul, revelam o que vem a ser a masculinidade e a feminilidade, determinando a atuação social e a interação  com outros  indivíduos a partir de  papéis reprodutores pré-estabelecidos.

Sabemos que inúmeras questões sobre esse tema hoje vêm sendo repensadas, e como as questões de gênero nos ambientes da cultura gaúcha rio grandense já vem sendo problematizadas e estudadas nos últimos anos. Alguns trabalhos que já desenvolveram questões sobre esse tema são Homossexualidades na territorialidade tradicionalista gaúcha (2017) de Édipo Göergen, Teoria queer e discurso de ódio: prenda transgênera e a análise de comentários de páginas da internet linkadas em redes sociais (2020) de Júlia Menuci, Joice Nielsson e Patrícia Reis, e Danças Tradicionalistas Riograndenses, Gênero e Memória (2014) de Gisela Reis Biancalana, apenas para citar alguns exemplos e algumas referências de leitura para possíveis aprofundamentos sobre o assunto. Somamos a estes novos questionamentos um exemplo vindo de fora, dxs hermanxs argentinxs [1].

A cultura gaucha do país platino, como bem sabemos, influenciou fortemente a maneira do Rio Grande do Sul perceber-se e identificar-se regionalmente, construindo uma identidade representativa para o restante do país. A dança, as vestimentas e os ritmos causaram inúmeras contribuições para a cultura regional sulista, que por mais que algumas vezes fossem vistos como “estrangeiros” aos olhos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, sabemos que foram influências diretas para muito do que hoje se reconhece simbolicamente. Basta recordar onde estavam as raízes das pesquisas de Lessa e Cortes, que além das memórias dos rio-grandenses, absorveu e investigou os gêneros populares argentinos, a partir das pesquisas do musicólogo argentino Carlos Vega, que inspirou a produção da bibliografia feita pelos folcloristas gaúchos.

Sempre à frente e amadurecidos em suas questões relacionadas à indústria da música e ao folclore, diferenciando-se bastante do Rio Grande do Sul nesse aspecto, visto que pelo estado é perceptível como o gênero musical regional mantém-se como um nicho restrito e isolado, a Argentina parece também já ter aberto uma porta sobre suas performatividades de gênero e sexualidade, o que por aqui ainda é incipiente dentro dos movimentos Tradicionalista e Nativista.

A heteronormatividade nessa cultura, como já abordamos, tem ligação com o mito ocidental da macheza, segundo Hobsbawm (2013), e pilares no patriarcado, o que é uma característica comum a diversas culturas que apresentam a bravura, a relação com os animais e toda a lida e relação neste universo agropastoril como seu mito fundador. O fato é que a discussão sobre gênero e a cultura queer [2] vem cada vez mais conquistando espaço nas performatividades sociais, o que pode ser demonstrado por novas performances de gênero mesmo em culturas tradicionais de raízes patriarcais, como foi visto no festival de Cosquín de 2022, realizado recentemente na província de Córdoba, na Argentina. 

Esse evento, que faz parte da tradição argentina, tendo acontecido sua primeira edição em 1961, em sua edição mais recente recebeu artistas trans e não bináries. Além disso, a partir deste ano o festival eliminou as categorias de gênero vocal feminino e masculino. Esta decisão foi tomada depois da denúncia realizada pela cantora trans não binária Ferni de Gyldenfeldt ao Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI) após ser proibida de participar. “Solista vocal” apenas, foi o nome da nova categoria.

Este fato causou inúmeros debates e visibilidade para a questão, onde ficou também demonstrado que os artistas que expandem e afrontam as representações de gênero são pessoas integrantes do movimento cultural folclórico, o que bastaria para os legitimar neste contexto, o que demonstra também seus conhecimentos sobre a tradição que estão inserides. Sabemos que esse é um pensamento que impera em meio aos movimentos tradicionalistas, mas vale pensar no quanto devemos buscar estar em ambientes plurais, e que sejam abertos a todas as pessoas. 

Esses fatos falam bastante sobre liberdade para viver sua identidade, seja ela de gênero, ou ligada às suas regionalidades, e o direito de fazer uso das suas referências, para que elas estejam sempre vivas. Quando será que esse passo será dado por esses pagos?

Notas

[1] Os x’s desta frase e do título referem-se à linguagem neutra, que é um fenômeno social, político e linguístico vinculado às lutas identitárias de grupos LGBTQIA+. Recentemente o sistema elu tem sido aplicado pois o uso de “x” ou “@”, não funciona na linguagem oral. O sistema elu faz parte de um conjunto de propostas linguísticas criadas com o propósito de introduzir na língua portuguesa um gênero gramatical neutro, sendo a proposta de maior destaque os neopronomes pessoais elu, delu, nelu, aquelu, equivalentes aos pronomes femininos e masculinos existentes na língua, porém neutros em gênero.

[2] A  dinâmica  instaurada  pelo  movimento LGBTQI+ originou novas óticas acerca de teorias pré-estabelecidas,  a exemplo da percepção de gênero frente à transexualidade    denominada Teoria Queer  (BUTLER,  2016). A Teoria Queer, explica Guacira Lopes Louro   (2004, p.4),  é atribuída a tudo aquilo que não é habitual, nas palavras da autora   “Queer  é  estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e drags”. Para Louro (2004), a  Teoria  Queer assume a responsabilidade  de  não se  definir,  de  não  se  enquadrar  em nenhum  papel já estipulado, ela aloca-se  “entre  lugares” e os indivíduos da categoria  assumem  “o  desconforto da ambiguidade”

(*) Clarissa Ferreira @clarisssaferreira . Violinista, etnomusicóloga, pesquisadora e compositora do Rio Grande do Sul. Bacharela em violino (UFPEL), mestra (UFRGS) e doutora (UNIRIO) em Música/Etnomusicologia, pós graduanda em Arteterapia. Possui quatro singles lançados, e está produzindo seu primeiro álbum autoral que se chamará LaVaca. Está lançando seu primeiro livro “Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul” pela Editora Coragem disponível em www.clarissaferreira.com . Criadora do blog e podcast @GauchismoLíquido e da escola online @OficinadeCompositoras

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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