Economia
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24 de fevereiro de 2022
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09:29

Indústria, sociedade e política no Brasil (por Ricardo Dathein)

Produção de chips na CEITEC, um dos alvos mais recentes do desmonte da indústria brasileira. (Foto: Arquivo / ACCEITEC)
Produção de chips na CEITEC, um dos alvos mais recentes do desmonte da indústria brasileira. (Foto: Arquivo / ACCEITEC)

Ricardo Dathein (*)

Os economistas normalmente tratam da indústria como um tema meramente econômico, com seus possíveis efeitos positivos para a produtividade, para as inovações e para o mercado de trabalho, ou então destacando suas ineficiências. No entanto, existem amplas implicações para a sociedade e a política. A deterioração social e da democracia brasileira tem como uma de suas causas o processo de desindustrialização ocorrido no país. Isso porque é fundamentalmente via a indústria, e com seus encadeamentos em outros setores, que o Brasil desenvolveu uma ampla classe operária, que foi se tornando uma classe com níveis de renda e de vida médios para os padrões de um país subdesenvolvido. O crescimento dessa chamada “classe média” pode ampliar a igualdade social e a democracia, e dar estabilidade a esse ordenamento. Ocorrendo a perda de peso do setor industrial, a tendência foi termos os efeitos opostos.

Já é bem conhecido o processo de desindustrialização por que passa o Brasil. Entretanto, a maioria das análises ainda considera que esse processo é mundial e natural (posição dos liberais), ou mundial, mas prematuro para o Brasil (posição antiliberal). De fato, de forma mais intensa nos anos 1980 e 1990, ocorreu um processo bastante amplo e generalizado de perda de peso das manufaturas, menos na Ásia e em alguns outros países. No entanto, a partir de meados dos anos 1990, e ainda mais após os anos 2000, esse processo em grande parte parece ter inclusive se revertido, enquanto no Brasil continuou se aprofundando. Assim, a tendência mundial, que já vinha de algum tempo, com novas políticas industriais e com reindustrialização nos países desenvolvidos, vai se intensificar muito depois da experiência da pandemia e com as disputas do ocidente com a China.

Existiu uma interpretação de autores liberais (como, por exemplo, Samuel Pessoa e Regis Bonelli) de que o Brasil teria sofrido de uma chamada “doença soviética” nos anos 1970 e 1980. Ou seja, uma indústria com um peso muito acima do padrão internacional, por conta de protecionismo, fundamentalmente. Portanto, a desindustrialização teria significado um processo de convergência aos padrões internacionais. De fato, em um pequeno período do final dos anos 1970 até meados dos anos 1980, o peso da indústria brasileira no mundo ficou um pouco acima de 3% (com pico de 3,4% em 1980), enquanto o PIB brasileiro nesse período representava um pouco menos de 3% (com pico de 3,0% em 1980) (ONU) e a população do país representava entre 2,7% e 2,8% da população mundial (ONU). Ou seja, nada muito acima de uma pretensa “normalidade” e, estranhamente, algo considerado negativo, uma “doença”. É claro que havia ineficiência, mas a solução nesse caso não deveria ser a eliminação do “paciente”. Como consequência das “soluções” adotadas, os liberais conseguiram, como era seu desejo, reduzir o peso da indústria nacional e, em 2020, a indústria manufatureira do Brasil representou apenas 1,3% da mundial, enquanto o peso do PIB foi de 2,2% e a população foi 2,7% da mundial.

Os dados da ONU (com valores em US$ constantes de 2015) mostram que a participação do total das manufaturas no PIB mundial aumentou de 14,5% em 1990 para 17,3% em 2020, enquanto no Brasil, entre os mesmos anos, reduziu-se de 16,8% para 11,9%. Com isso, partindo de um índice de 100 em 1990 (o início da análise nesse ano deve-se a que esse é o momento chave de adoção do neoliberalismo no Brasil), em 2020 o Brasil caiu a 70,9 e a média mundial foi a 119,1. Ou seja, enquanto a participação das manufaturas no Brasil reduziu-se quase 30%, para o mundo ela elevou-se quase 20%. Então, falar-se em desindustrialização para o mundo como um todo não é mais adequado. Ao contrário, está ocorrendo um aumento do peso dessa produção.

Além disso, como destacam Araújo, Araújo, Peres e Punzo, para os anos 1993-2018, quanto maior o grau de desenvolvimento dos países, maior tendeu a ser a participação do valor adicionado das manufaturas no PIB ao longo do período, e isso é ainda mais intenso para setores com alta intensidade tecnológica, só não sendo verdadeiro para produtos de baixa tecnologia, o que é lógico para países mais desenvolvidos.

Uma das características marcantes do Brasil é a constituição de sua indústria, com forte peso das multinacionais. Isso criou uma classe empresarial industrial nacional fraca. Chama a atenção, também, o preconceito do pensamento liberal nacional com o setor industrial, em geral retratado como ineficiente e dependente de protecionismo e de subsídios. Os setores agropecuário e financeiro, no entanto, possuem amplos privilégios e pagam relativamente poucos impostos, mas são vistos como modernos e eficientes. A formação de uma classe operária forte pode ser uma das explicações para o preconceito da classe dominante brasileira em relação ao setor industrial. Nesse caso, para essa classe, seria melhor permanecer no atraso, ao invés de ter que enfrentar contestações à ordem. Forma-se, portanto, uma aliança liberal conservadora defensora do subdesenvolvimento.

Infelizmente também existe uma certa tendência de parte da esquerda de se conformar com a desindustrialização, entendendo o processo como algo irreversível, apesar de toda a evidência internacional contrária e de todo o potencial que o país possui.

Existe, desde já há mais de 30 anos, e parece ter se ampliado recentemente, no Brasil, um quase consenso ultraliberal entre as elites empresariais, jurídicas, militares, midiáticas e religiosas. Apesar de todos os fracassos (em termos de capacidade de inovação, de ganhos de produtividade e de desenvolvimento econômico e social) desse período, em média, continua a visão da necessidade de “dobrar a aposta” nas políticas liberais. Mas, de outra parte, o tema da indústria voltou a ser ressaltado no debate político, por parte de setores progressistas, inclusive com certa autocrítica da esquerda, impulsionado pelos novos ares dos debates e da realidade internacional, apesar de que com atraso em relação ao resto do mundo.

Assim, se o setor industrial, ao que parece, não é importante para a maioria da classe dominante brasileira, para a classe trabalhadora e para a democracia certamente o é. A indústria, com todo seu potencial de inovações, inclusive na área ambiental, e por seus impactos positivos na economia como um todo, será fundamental para a dinamização da economia, para o avanço social e para a democracia. Talvez de forma surpreendente ou contraditória, ao que tudo indica quem vai defender com mais intensidade o desenvolvimento industrial é a esquerda política, e não a classe empresarial. Desse modo, quem sabe se possam adotar iniciativas de políticas públicas geradoras de crescimento econômico, ganhos sociais e ampliação de democracia.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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