Opinião
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1 de fevereiro de 2022
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07:03

A irresistível tentação de ser produto (Coluna da APPOA)

Por
Sul 21
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"Este empuxo a se tornar objeto de consumo é um ato voluntário e deliberado". (Imagem: Pixabay)

Luciano Mattuella (*)

Rolar os stories do Instagram é a forma contemporânea de zappear canais na televisão. Em tempos em que a televisão por assinatura está sendo cada vez mais substituída pelos streamings, tivemos que encontrar uma outra forma de saciar aquela nossa ânsia por dar uma espiada na satisfação que pode produzir aquele outro canal – ou aquele outro recorte de vida de alguém.

Foi num desses momentos de tédio que me deparei com a ideia para esta coluna. Passando os stories dos conhecidos, vi uma foto que me parece paradigmática dos tempos em que vivemos: um grupo de (suponho) amigos em uma festa, todos vestidos com a mesma roupa vermelha e levantando um copo de cerveja na direção da câmera. Meu primeiro pensamento foi que se tratava de um post patrocinado, estas postagens que as empresas fazem para venderem os seus produtos nas redes sociais. Demorei alguns segundos para reconhecer naquela imagem o rosto familiar de um amigo que não vejo há tempos. Acima dele, a marca da cerveja estampada na parede, dando a entender que estava em uma festa patrocinada pela empresa. 

Apesar de eu ter seguido zappeando a programação dos outros, essa imagem ficou na minha cabeça. Ela me parece paradigmática, como eu disse antes, porque ela pode servir como um ótimo interpretante de nossa cultura. Gostaria que o leitor percebesse que há uma certa inversão de papéis ali: não se trata de uma marca de cerveja fazendo comercial do seu produto, mas de um conhecido se colocando como o próprio produto a ser consumido. A cervejaria em questão não gastou um centavo com essa publicidade. A propaganda da marca se deu de forma espontânea e deliberada, por livre escolha. A mensagem por detrás era algo como “seja feliz como eu sou bebendo esta cerveja com os meus amigos”. 

Não costumo ser alguém lá muito nostálgico, mas confesso que senti um certo desconforto com esta postagem. Não acho que as redes sociais são o grande mal da humanidade – ela mesma é -, nem que os tempos antigos é que eram bons. Também não  acredito que sejamos assim tão inocentes a ponto de sermos atingidos de forma tão sem crítica por propagandas no Instagram, Twitter ou seja lá onde for. Mas também não acredito que seja possível menosprezar o quanto a lógica das redes produz, sim, uma modalidade de subjetivação que ainda não existia. Ainda que eu tenha aproximado no começo desta coluna redes sociais e televisão, há pelo menos duas diferenças importantes entre estes dois meios: a primeiro, é que nos horários comerciais a gente costumava trocar o canal para ver o que estava passando. E, segunda, mesmo quando víamos as propagandas, o esforço das marcas era seduzir o espectador com as promessas de satisfação que produto traria. Aquele que estava ali na frente da tela era visto como um consumidor, precisava ser convencido a gastar o seu dinheiro. 

Quando vemos, entretanto, filas se acumulando na frente das lojas da Apple antes mesmo do lançamento de uma nova geração de celulares, percebemos que esta dinâmica parece ter mudado. Algo em que a Apple foi – perversamente – genial foi em se endereçar ao seu público não como consumidores, mas como membros de uma irmandade: não à toa, todos os seus computadores, celulares e iPods vinham com um adesivo da marca, esta maçãzinha branca que volta e meia vemos coladas nos carros. Ostenta-se este decalco como uma insígnia de pertença a uma fratria. E, mais uma vez, a empresa não precisa gastar nada com esta publicidade: ela é espontânea e escolhida.

Mas nas redes a lógica parece ser ainda mais sofisticada. No caso do meu conhecido bebedor de cerveja, ele não é o garoto propaganda de uma marca, ele é o próprio adesivo no carro, por assim dizer. Ele é o produto. Ele é quem é consumido. Como diz o adágio cuja autoria se perdeu, quando um produto é gratuito – como o Instagram, por exemplo – é você mesmo que é o produto. 

O que me parece mais curioso nisso tudo é que este empuxo a se tornar objeto de consumo é um ato voluntário e deliberado, passando longe de ser uma imposição. Compartilhar a nossa intimidade nas redes se tornou tão banal que nem percebemos mais o significado disso. 

É evidente que todos queremos ser amados, reconhecidos e invejados. Seria hipócrita dizer que isso não acontece. Precisamos do olhar do outro para avalizarmos o nosso valor frente à sociedade, para encontrarmos o nosso lugar entre os pares. Seria ingênuo também supormos que esta hipoteca do valor social de alguém ao olhar dos outros seja uma invenção recente. Entretanto, nunca parece ter sido tão evidente a distinção entre reconhecimento e fama, entre ser amado por algo que se produz ou por quem se é.

Exemplo recente disso é o participante do Big Brother Brasil deste ano cujo objetivo de vida era “ser famoso”. Assim, sem mais adendos. Ser famoso. Não ser um cantor famoso, um ator conhecido, um advogado de renome. Só ser famoso. Ou, como ele mesmo disse: não conseguir comer em uma praça de alimentação sem ser importunado por algum fã.

Não é de se estranhar que em uma cultura onde parece que todos nós estamos sob uma placa de “sorria, você está sendo filmado”, chegue tanto ao consultório indivíduos parecidos com este participante do Big Brother. Engana-se quem pensa que a casa onde os brothers estão confinados seja uma exceção ao mundo: o que vemos lá, na verdade, são os sintomas do nosso laço social em estado aguda, como uma ferida aberta. Afinal, somos sim uma sociedade que confunde reconhecimento com fama.

Em uma época eminentemente visual, em que somos apaixonados pela nossa própria imagem, percebemos uma ânsia pela adequação às demandas da sociedade, ou seja, um ímpeto a fazermos de nós mesmos um produto a ser consumido. Uma certa antropofagia digital, por assim dizer. A dissonância com relação ao ideal cultural é ou vista como uma marginalização de si ou, pior ainda, como o ato heroico de alguém que então será consumido como um exemplo de dissidência. Mesmo aqueles que se colocam “de fora” são consumíveis como role models.

Já o reconhecimento passa por uma outra via: poder fazer-se reconhecido implica, pelo menos, a produção de algo que se destaque, se separe daquele que a produz. Seja um livro, uma música, uma dissertação de mestrado, um artigo científico ou mesmo o trabalho cotidiano de um consultório ou escritório. Poder oferecer à cultura não a si mesmo, mas algo que se faz. 

Em um ambiente colonizado por influencers e pessoas que supõem que a sua pequena vida é digna de exibição, perdem-se os referenciais de intimidade e as intensidades dos laços afetivos. Falamos daquela atriz ou daquele ator como se fossem nossos amigos, choramos pela morte de um desconhecido como se fosse a de um parente próximo. Confundimos visibilidade com competência e acabamos atribuindo saber a figuras mais preocupadas com o gerenciamento de sua imagem do que com a dedicação ao seu campo profissional. 

Se “a televisão me deixou burro, muito burro demais”, como já diziam os Titãs nos anos 80, hoje em dia há que se estar atento a que não sejamos os próximos produtos em liquidação nas prateleiras digitais.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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