Opinião
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8 de fevereiro de 2022
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13:21

A inflação alta e os Bancos Centrais na berlinda (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

(Foto: Pixabay)
(Foto: Pixabay)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“A maneira mais segura de arruinar um homem que não sabe lidar com dinheiro é dar-lhe algum.” ― George Bernard Shaw

A Inflação no Centro do Tabuleiro Financeiro

Os Bancos Centrais (BCs) surgiram para viabilizar o acesso aos meios de pagamento necessários ao bom funcionamento das economias de mercado. Garantir a estabilidade nos preços dos bens e serviços é base fundante dos seus mandatos e, por decorrência, políticas. Em momentos onde aqueles preços sobem de forma generalizada e em ritmos fora do normal, espera-se que os BCs atuem de acordo com suas diretrizes legais. Atualmente, a inflação atingiu os maiores níveis das últimas quatro décadas nas principais economias avançadas. Em situações normais de temperatura e pressão, as taxas de juros de curto prazo (“policy rates”) já estariam em trajetória de alta. Todavia, os BCs mais influentes, particularmente o Federal Reserve (FED) e o Banco Central Europeu (BCE), têm se mostrado pouco dispostos a adotar a agressividade recomendada pelos manuais de economia produzidos por seus economistas de maior prestígio. 

Uma alta mais agressiva dos juros poderia comprometer a recuperação do emprego e da renda, bem como precipitar uma crise financeira, particularmente se a espiral inflacionária em curso for, de fato, temporária. Esta constatação dos dirigentes dos BCs parece sair da boca dos críticos das políticas monetaristas e não dos guardiões da estabilidade. Por que os BCs das economias de alta renda estão hesitando em encerrar a expansão quantitativa dos seus balanços e elevar os juros diante das cobranças diárias de analistas e gestores da riqueza privada? 

Há mais de uma década, as taxas básicas de juros no G7 têm sido mantidas abaixo de 2,5% a.a. Nos anos 1990, elas estavam acima dos 5% a.a. Atualmente, a média das policy rates está próxima de zero, com a máxima no Reino Unido (0,5% a.a.) e mínima no Japão (-0,1% a.a.). Em uma amostra ampliada, que inclui 43 economias acompanhadas pela The Economist, entre avançadas e emergentes, constata-se que a mediana das taxas de juros dos títulos de 10 anos emitidos pelos respectivos Tesouros nacionais é +1,8%. Em termos reais, descontada pela inflação acumulada nos últimos doze meses (ex-ante) ou pela inflação esperada em 2022 (ex-post), tal mediana é de, respectivamente, -1,3% e -2,1%. 

Vivemos a era do dinheiro de graça, particularmente nas economias de alta renda, o que não produziu aceleração no crescimento dos investimentos produtivos, da renda real, da produtividade e dos salários. Os principais problemas sociais, econômicos, ambientais e sanitários seguiram se agravando desde 2007. A atuação não convencional dos BCs foi muito mais direcionada para sustentar os preços dos ativos financeiros, a qual foi tão bem sucedida que a riqueza global seguiu sua trajetória de alta e, principalmente, de maior concentração. Evitou-se uma espiral deflacionária semelhante àquela observada nos anos 1930, de tal sorte que não tivemos uma nova “Grande Depressão”. O dinheiro fácil foi para os ricos, enquanto a maioria das pessoas ficou presa na “Grande Estagnação”.

Na era da globalização financeira com predomínio do neoliberalismo, a aposta dos investidores de que serão protegidos pelo Big Bank e o Big Government tem-se provado correta de forma recorrente, particularmente nos dois últimos grandes choques, a CFG e a pandemia da Covid-19. Este fato não passa desapercebido pelo establishment acadêmico e de mercado. Raghuram Rajan, ex-economista chefe do FMI e ex-presidente do Banco Central da Índia, resgata o adágio tradicional segundo o qual cabe as BCs tirarem a bebida da festa quando todos ainda estão animados. Isto não tem sido feito, pelo temor de que os mercados financeiros não consigam absorver eventuais prejuízos. No caso do BC estadunidense, tal “frouxidão” teria ampliado o potencial para a eclosão de uma nova crise financeira, na medida em que os estímulos excepcionais não foram cortados “na hora certa”, o que criou um quadro estrutural de risco moral (moral hazard). 

Para Nouriel Roubini, se em “tempos normais”, com inflação baixa, a regra de ouro dos investidores é compor as carteiras com 60% ativos de maior risco (ações) e 40% com ativos de proteção, particularmente a dívida pública, em um ambiente de alta da inflação, não se pode descartar decisões mais ousadas na defesa dos portfólios.  Não à toa, os donos da riqueza estão ampliando suas reservas líquidas, possivelmente à espera do momento de correção (leia-se “queda intensa”) dos mercados. Estima-se que somente 13 grandes empresas que fazem parte da S&P 500, dentre elas as gigantes da Gig Economy (Apple, Alphabet/Google, Microsoft) estão acumulando recursos líquidos da ordem de US$ 1 trilhão, equivalentes a 40% do montante estocado pelo conjunto das empresas (US$ 2,7 trilhões) cotadas naquele segmento do mercado acionário. Mas qual a racionalidade posicionar em ativos que não rendem juros (dinheiro) ou que pagam juros nominais próximos de zero (dívida pública governamental) quando a inflação atinge 7% a.a. (nos EUA)? 

Com a maior taxa de inflação em décadas, o retorno real de ativos governamentais que rendem juros é negativo, e do “dinheiro em caixa” é ainda menor, pois sequer há a proteção dos juros nominais. Keynes já havia nos ensinado em sua “Teoria Geral”, que buscar liquidez faz todo o sentido em tempos de elevada incerteza. 

Para o Financial Times, a perspectiva de elevação nas taxas básicas de juros já produziu como resultado o pior desempenho da Bolsa de Valores dos Estados Unidos (EUA) desde a crise financeira global (2007-2009, CFG). Os assim-chamados “mercados” tornaram-se fortemente dependentes das políticas monetárias não convencionais, cujo impacto geral em termos de expansão da base monetária implicou em ampliação recorde entre 2007 e 2021: variação de seis vezes somente nos balanços do FED, BCE, BoJ (Japão) e PBoC (China). Em dólares correntes, um salto de US$ 5 trilhões para US$ 31 trilhões, algo nunca visto na história dos mercados financeiros.

Neste contexto, a volatilidade dá sinais de alta e os investidores passam a ficar com o dedo engatilhado no botão de “venda”, sempre atentos às perspectivas de um movimento baixista (Bear market). O indicador de volatilidade da bolsa de futuros e opções de Chicago (VIX CBOE) está em movimento de alta desde a metade de 2021. O índice Dow Jones, que variou de forma positiva nos últimos três anos (2019: +22,3%; 2020: +7,3%; 2021: + 18,7%), a despeito da pandemia e da recessão que lhe seguiu. Porém, até aqui (07/02) as perdas acumuladas no ano se aproximam de 4%. Como é usual nos ciclos de euforia-expansão-crise dos mercados, todos imaginam que conseguirão sair do risco em tempo de preservar seus ganhos. As rupturas ocorrem exatamente porque isto não é possível. Ganham somente os que chegam primeiro e, também, saem na frente dos demais. Para os retardatários, resta a esperança de um novo socorro vindo das Autoridades Monetárias. 

Há uma percepção quase generalizada de que os juros básicos vão subir ao longo de 2022. Especialmente no caso mais influente, que é o FED, os juros reais (descontada a inflação) estão em um piso histórico sem precedentes. Stephen Roach, ex-presidente do Morgan Stanley Asia, nos oferece uma perspectiva sobre o comportamento dos juros reais, onde o ciclo recente é o que representou as maiores taxas reais negativas. Para os analistas de mercado, os BCs mais influentes do mundo estão “atrás da curva”, vale dizer, já deveriam ter começado o aperto monetário. Neste momento, a incerteza real tem menos a ver com o problema inflacionário, mas sim com o risco financeiro. A busca desordenada por liquidez para se antecipar às oportunidades futuras de comprar ativos na baixa pode ser o estopim do próprio ciclo baixista. Não é muito difícil produzir faíscas que causem explosões de grande porte, quando se está cercado por toneladas de querosene. 

Uma forma de expressar este fato é verificar a relação entre o estoque de ativos financeiros e o PIB. O numerador reflete o comportamento do mundo das finanças e é comandado pela valorização dos preços de ações, títulos de dívida e demais ativos nos quais a riqueza privada se expressa. Já o PIB é o fluxo de produção de bens e serviços, a assim chamada “economia real”. Ambas as dimensões são afetadas pela política monetária, ainda que a sabedoria convencional sustente que o foco dos BCs deva ser a de estabilizar os preços dos bens e serviços produzidos. Não seria de sua competência afetar os preços financeiros, ainda que, depois da CFG, assuma-se que a sustentação da estabilidade financeira é relevante. No plano formal, a introdução de mecanismos de regulação macroprudencial trataria de evitar o acúmulo excessivo de riscos. O grande problema é que o comportamento dos investidores não é neutro diante da política monetária e dos “ciclos financeiros”. Pelo contrário.

Tomando-se o caso emblemático dos EUA, o quociente ativos financeiros/PIB manteve-se abaixo de 2:1 durante mais de três décadas (1950-1980). Foi a era da “repressão financeira” e do capitalismo regulado. A partir dos anos 1980, aquela relação passou a crescer de forma exponencial e atualmente se aproxima de 6:1. Esta alta colaborou para a piora na distribuição da riqueza na maior economia do mundo. Entre 1950 e 1980, os 10% mais ricos do país detinham pouco mais de 30% do estoque de riqueza. O JP Morgan mostra que, a partir da CFG, por conta da forte alta do mercado acionário derivada da política monetária não convencional, aquela participação estabilizou-se acima de 50%. Indicadores equivalentes tratam de segmentos específicos dos mercados financeiros. Assim, por exemplo, para o conjunto da economia global, a capitalização das empresas cotadas em bolsa oscilava entre 30% e 50% do PIB global nos anos 1970 e 1980. Em 2020, no pior ano da pandemia, esta relação atingiu o pico da série histórica reportada pelo Banco Mundial: 133%. O mercado de títulos  tinha um estoque de US$ 10 trilhões (ou 50% do PIB global) em 1989, e de US$ 130 trilhões em 2020 (144% do PIB global).

Na era neoliberal o establishment usou da força dos seus Estados Nacionais, particularmente na América do Norte e na Europa, para ampliar privilégios. A atuação dos seus BCs nos diversos “socorros financeiros” só reitera esta realidade. Portanto, o surto inflacionário recente poderá até precipitar um movimento altista dos juros básicos. Ainda assim, as Autoridades Monetárias seguirão com um olho no cumprimento formal dos seus mandatos (estabilizar os preços de bens e serviços) e outro nos desdobramentos de suas decisões sobre os gestores da riqueza privada. Estes podem absorver as mudanças sem rupturas profundas. Porém, em um mundo cada vez mais turbulento, com conflitos geopolíticos e “tambores da guerra” ecoando na América do Norte e no continente Euroasiático, talvez os BCs fiquem atrás da curva, não por conta da aceleração inflacionária, mas pelo desmonte descoordenado das posições dos investidores.  

Diante de riscos exacerbados, ninguém desejará ser último a sair da festa. Ao mesmo tempo, poucos ousam sair primeiro, quando ainda há muita bebida “grátis” sendo servida. A racionalidade individual de aproveitar as oportunidades, a despeito dos desequilíbrios existentes, amplifica o potencial desestabilizador dos mercados. Mais dívidas são contratadas para validar o desejo de ampliar a aquisição de novos ativos. Se as perspectivas de ganho caírem diante dos custos de rolar as dívidas, os agentes econômicos mais alavancados podem começar a vender ativos para realizar lucros e liquidar os passivos. Se o volume e o ritmo de ajuste forem grandes demais, está-se diante de um quadro típico de crise financeira sistêmica. Por isso mesmo, nos anos 1930, diante da Grande Depressão, Keynes nos alertou que os “mercados podem ficar irracionais por mais tempo do que você consegue ficar solvente”. Quase um século depois, este alerta permanece válido.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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