Opinião
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11 de janeiro de 2022
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07:00

Edgar Morin incansável (por Alfredo Gil)

Edgar Morin completou 100 anos no ddia 8 de julho de 2021 (Reprodução/Youtube)
Edgar Morin completou 100 anos no ddia 8 de julho de 2021 (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)

Dia 8 de julho de 2021 o sociólogo e filósofo francês, Edgar Morin, completou 100 anos. Daí a inspiração para o título do seu último livro Leçons d’un siècle de vie (Ed. Denoël, 2021), traduzido em português pela editora Bertrand Brasil. 

Podemos salientar ao menos duas razões para que as lições expostas por este grande pensador estejam no plural. A primeira razão concerne ao leitor, que tem a oportunidade de fazer uma viagem secular embarcando na trama de um texto de qualidade literária vertiginosa, traçada por um intelectual profundamente engajado em inúmeros acontecimentos históricos sem nunca acomodar-se nas evidências alienantes de seu tempo. A outra diz respeito ao militante do “pensamento complexo” que ele é e que soube tirar lições de suas escolhas, de suas posições políticas, admitindo seus erros e enganos. 

Divulgação

O humanismo e universalismo que Edgar Morin reivindica precede a “unidade plural da personalidade” que ele reconhece, ou seja, de um francês, de origem judia sefaradi, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrâneo, europeu cultural, cidadão do mundo, filho da Terra-Pátria. Nenhum essencialismo nesta descrição de si que poderia servir a uma afirmação do eu, de um Eu patriótico, por exemplo. Nada disso. Modesto, o autor lembra sua condição minúscula e efêmera que não pode subtrair-se do conjunto de uma sociedade e de um ecossistema que o engloba.

Se suas convicções humanistas são fortes, elas se devem ao fato de que, no decorrer do tempo, paradoxalmente, ele abandona a noção de “perenidade do presente, de continuidade do devenir e de previsibilidade do futuro”, para reconhecer o que há de incerto, de inesperado, tanto em uma vida individual como na vida de uma nação. Atenção: a incerteza e o inesperado, que devem ser integrados na história humana, não são acasos. Aqui, Edgar Morin convoca Marx a respeito da revolução: “É a velha toupeira que sabe muito bem trabalhar embaixo da terra para aparecer bruscamente”. 

Donde a ideia, nada fácil de suportar, segundo a qual “a história humana é relativamente inteligível a posteriori, mas sempre imprevisível a priori”. 

São considerações de um sábio centenário que viveu acontecimentos que projetaram grandes esperanças, mas atravessou outros tantos abomináveis. Aqui, uma parcela de uma lista extensa: o imprevisto da crise de 1929, da ascensão de Hitler ao poder, do pacto germano-soviético em 1939, da guerra da Argélia, o imprevisto do desmoronamento da União Soviética ou da guerra da Iugoslávia, o imprevisto da doutrina Thatcher-Reagan, da destruição das duas torres do World Trade Center, o imprevisto da crise mundial das democracias e, enfim, o imprevisto da pandemia da Covid. 

O que ele chama de “complexidade humana” pode então, devido ao seu caráter versátil e inconstante, revelar comportamentos contrários, de muita solidariedade ou recusa de solidariedade, de altruísmo ou de egoísmo, pode organizar regimes compactos, totalitários, de um partido único, ou desembocar na pulverização e fragmentação dos laços sociais resultantes da exorbitância neoliberal. Assim, ele recorda os contrapontos dos Trinta Gloriosos de prosperidade econômica (1955-1975). “O nível de vida se eleva, mas a qualidade baixa; as mobilidades (veículo, turismo, férias) progridem, mas as exigências técnicas são cada vez mais escravizantes, o bem-estar material aumenta na proporção de um mal-estar existencial, a hegemonia crescente do econômico avança assim, de mãos dadas, com a degradação do político”. Seu diagnóstico é sans merci : “tiro destes anos a lição de que um progresso econômico e técnico pode comportar uma regressão política e civilizacional, o que, a meus olhos, é cada vez mais flagrante no século 21”. 

Edgar Morin insiste sobre os efeitos perversos da cupidez neoliberal, que faz com que os homens e as mulheres sejam tratados “como objetos estatísticos”, e acrescenta ainda que “a primazia do quantitativo dos tecnocratas e dos econocratas dissipa a humanidade dos humanos em cifras”. Ele conclui que “nossa sociedade trata tudo o que é humano como objeto mensurável, pelo cálculo, e não enxerga o que é individual, subjetivo e passional, vendo somente PIB, estatísticas, sondagens e crescimento econômico”. 

Sua análise constata os mesmos desvios no progresso científico fagocitado pelo capitalismo: “o lucro se apodera da genética, transformando os pesquisadores em businessmen, enquanto que a pesquisa médica é financiada pelas multinacionais farmacêuticas”. Temos aí a realização da velha fórmula de Rabelais: “Ciência sem consciência é ruína sem alma”.   

Se o diagnóstico feito sobre nossa sociedade contemporânea é rude, estejam certos de encontrarem, na leitura das Lições, o Edgar Morin resistente, combatente e militante que exala força e ânimo encorajadores. O autor, frequentador de programas de rádio e TV, continua lúcido e metódico em suas propostas para compreender o mundo e agir sobre o real que nos espreita: compreender a incerteza do real permite pensar que ainda há possível apesar de invisível. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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