Opinião
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28 de dezembro de 2021
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09:23

Sobreviver ainda é sobre viver (Coluna da APPOA)

Foto: Arquivo Pessoal/ Gilson Mafacioli
Foto: Arquivo Pessoal/ Gilson Mafacioli

Volnei Antonio Dassoler (*)

Dezembro acabou sendo um mês de grandes afazeres. Uma delas foi a mudança de casa e de bairro, ainda na mesma cidade. Nessa transferência, criam-se novos itinerários e novas referências para a vida cotidiana. Por um momento, tudo fica fora do lugar, mas, dependendo das razões, o transtorno se faz paciente pela promessa de compensação. 

Inevitavelmente, um tempo deste processo é dedicado para decidir o destino de alguns objetos. Abre-se uma espécie de exercício de escolha sobre o que será levado para a nova casa e o que deve ser deixado para trás, pedaços de nós. Por um instante, nosso horizonte titubeia entre o acento no passado e a projeção no futuro. Se, por um lado, habitamos espaços materiais e concretos, por outro, não nos é possível negar que somos habitados por memórias que, com o auxilio de objetos, recriam a sensação e devolvem a convicção de que nossa vida requer certa linha de continuidade, num tipo de experiência espaço-temporal única. Foi o que aconteceu com a pilha de discos de vinil e de CDs.   

Minha família, assim como a grande maioria das famílias brasileiras, não tinha uma biblioteca para chamar de sua, exceto uma pequena enciclopédia que não era a Barsa. Os livros, em especial os de literatura clássica, habitavam a biblioteca da escola. Já adolescente, foi o realismo fantástico de Incidentes em Antares, romance de Erico Verissimo, com sua ironia e crítica social, o responsável por me introduzir no universo das letras, mas já era tarde, e a síntese metafórica e poética da música já havia alcançado em mim a centralidade de uma certa função interpretante de que cada humano precisa dispor para que a travessia da existência não seja demasiadamente solitária. 

Alguns de nós elaboram a angústia e desvendam os enigmas que forçosa e fatalmente nos acompanham com o auxílio e a mediação dos livros. O diálogo estabelecido entre texto e leitor adquire, muitas vezes, função interpretante e de alteridade e, frequentemente, a leitura é interrompida para dar vazão a pensamentos em livre associação que tocam a subjetividade. Se os livros eram poucos, pude contar com a democracia da música que, em seus diferentes estilos, esparramava letras e melodias por intermédio de hinos religiosos, de canções infantis e de teor folclórico e nos inúmeros gêneros da canção popular brasileira, desde a MPB passando pelo sertanejo, regional-nativista e o samba. Em companhia da música, caminhos menos ortodoxos e mais plurais trilharam a investigação sobre as promessas do mundo e das existências possíveis. O ritmo e as letras do Abba, Elis Regina, Secos e Molhados, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Maria Bethânia e, mais tarde, Legião Urbana, RPM, Alcione, U2 e Madonna, lista incompleta e não atualizada, compuseram uma trilha sonora que parecia rastrear e conciliar as marcas do desejo na busca por encontrar um “jeito de ser no mundo”, tarefa incontornável que, não raras vezes, se apresenta como (in)determinação do destino. 

A música, por sua estrutura de afetação de sentido e de corpo, vai da estabilidade ao estranhamento narcísico, sustentando uma função interpretante, inerente à própria arte e endossada pelos efeitos no campo das subjetividades. Vê-se, pois, a relevância da discografia como solidária à vida de cada um em particular, fração da solução singular – no diálogo com o coletivo/cultura -que se faz presente desde as versões clássicas da história do amor não correspondido até o questionamento sobre a felicidade e sobre qual lugar no mundo nos seria reservado. A androginia tropical dos Secos e Molhados foi eficaz, para mim, na suspensão do sentido fixado ao campo do sexual. Já a música Sentado à beira do caminho, na voz de Roberto Carlos, que tecia o sofrimento sobre a espera amorosa e o improvável êxito da mesma, ecoava, em mim, pouco a sua dimensão romântica. A instauração rítmica das ressonâncias era despertada pelos versos que faziam alusão ao corpo e à necessidade de um tempo de espera e, paradoxalmente, pela condição imperiosa da mesma ser concluída. Em parte, desde lá, sei que a espera não é sinônimo de imobilidade ou paralisia, nem de corpo, nem de alma, mas um tempo que antecede ao movimento e à mudança.

Em 2021, para mim, faltou uma música. 2021 nos desamparou, entorpecido pelo cinismo e saturado pelo redemoinho verbal que instrumentalizaram à inaceitável indiferença à vida e inviabilizaram os esforços de diálogo, base propulsora da estrutura e da convivência democrática. Ainda assim, não foi um tempo perdido, tragicamente um tempo de espera e de esperança. 2022 está aí e nos convoca ao compromisso e ao movimento de sustentar a dignidade à vida como direito universal. 

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Doutor em Psicologia Social e Institucional, e-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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