Opinião
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7 de dezembro de 2021
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06:21

Breves instruções de navegação (Coluna da APPOA)

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

A todos os amigos que ajudaram a manter as velas abertas

Sempre fui um homem apegados aos rituais.

Gosto das rotinas, dos maneirismos que se repetem, gosto muito dos hábitos. Como desde pequeno fui alguém com muito medo da morte, garantir que as coisas voltariam ao seu lugar sempre me passou uma certa sensação de poder suspender o tempo, de deixar o fim sempre condicionado a um imprevisto, nunca como resultado natural de uma temporalidade que sempre nos anuncia o horizonte da morte.

Também gosto da rotina porque me interessam as pequenas variações: o grão diferente sendo moído para o primeiro café do dia, o vinho levemente contrastante com aquele da semana anterior, o livro talvez mais denso que o último lido. É só na referência com a rotina que as mínimas diferenças vêm à luz. 

Por um lado, este apego ao levemente divergente foi um grande amigo durante o período de isolamento social: cada chá de aroma diferente era comemorado como uma viagem a um país desconhecido, cada livro terminado antes de dormir, uma celebração de um fôlego estrangeiro. Muitos de nós nos apegamos aos detalhes neste período tão difícil, muito de nós fomos acompanhados pelos pequenos afagos do cotidiano. 

Por outro lado, como alguém tão lapidado pelos hábitos e pela circularidade do tempo, no começo da pandemia tive que reorganizar os meus contornos. Tomar café da manhã e atravessar a rua até o consultório ouvindo música nos fones deixou de acontecer. Abrir a porta para alguém esperando na sala de espera também não ocorreu por mais de um ano e meio. Também ficaram aprisionados em outro mundo as mesas de bar compartilhadas com os amigos, os abraços que se fazem âncora e as despedidas como promessas de reencontro breve. 

Ao longo deste difícil período, me confortavam as imagens marítimas: uma tempestade sendo atravessada, um mar revolto a ser suportado, uma esperança de cais por perto. Os portos se fecharam, entretanto. Aos poucos, o bote salva-vidas foi se tornando uma nau complexa, uma embarcação que fomos adequando às nossas novas necessidades. 

Já agora, que as coisas parecem estar um pouco melhores, tem sido muito importante reencontrar os amigos e contar como vínhamos atravessando estas intempéries. Tenho percebido algo bastante curioso: quando visito ou sou visitado por velhos parceiros de vida, sinto a necessidade de lembrar de histórias antigas, da época do começo do laço de amizade, da faculdade, e até mesmo da infância. Parece que este retorno à terra firme tem mobilizado uma curiosa necessidade de refazer a minha própria narrativa a partir da troca com os outros, como se fosse preciso reordenar os espelhos que me devolvem uma imagem de quem eu sou. Ou de quem fui e, a partir daí, delimitar uma mínima borda. As travessias, os contornos, as margens, os litorais. Fazer-se porto novamente a partir das histórias compartilhadas. 

Curiosamente, o mesmo se faz quando alguém morre: o velório como este ritual de transformação do corpo em palavra, da matéria em espírito. Não são incomuns os ritos fúnebres que nos levam a outros tempos, em que o morto é celebrado em anedotas. A palavra como uma forma de exumação para que, enfim, se possa finalmente enterrar a carne. Em um país em que mais de seiscentas mil pessoas morreram – dentre estas, muitas por descaso do governo federal -, é imprescindível que a contagem dos cadáveres possa também se transformar em uma contação de cada história singularmente, de cada mundo que se foi quando alguém próximo ou conhecido morreu. Quando uma pessoa morre, também se vão junto todas as narrativas possíveis deste indivíduo, todos os laços que nunca mais poderão ser feitos, todas as vidas em que nós também poderíamos estar. Neste sentido, quando morre alguém, também algo de nós é perdido. Se acabam todas aquelas virtualidades em que estaríamos implicados na vida do outro.

Assim, este certo empuxo a narrar a si mesmo é um paradoxal processo de reencontro com a vida, mas também de elaboração do luto de um mundo que se foi. Neste ano e meio, muitos nos encontramos e nos desencontramos com nossas escolhas de vida, nossos interesses e, especialmente, com as prioridades do nosso cotidiano.

Para alguns, o período de isolamento se traduziu em um excesso de trabalho, uma alienação ao tempo da internet, em que tudo é imediato, em que os intervalos são vistos como oportunidade de fazer mais, e não de parar. Já outros viveram um tempo que não passava nunca, marcado pelo tédio de uma rotina que se repete a si mesma sem as ditas pequenas variações. Tenho pensado que a pandemia nos colocou a todos em uma temporalidade muito particular, uma relação com um tempo ou extremamente acelerado ou, por outro lado, bruscamente inerte. Assim, este período de reencontro com os laços mundanos também me parece ser o de um conflito de temporalidades: a espera na fila do pão, os deslocamentos para a casa dos amigos, a ansiedade por aquela mesa de bar combinada para o final de semana.

Isto tudo também confrontado com a temporalidade própria do inconsciente, que opera em outro registro. Não à toa, Freud usava a palavra “trabalho” para descrever os processos psíquicos. Há o trabalho de luto, o trabalho de elaboração, o trabalho do sonho… Tenho compartilhado com os amigos um profundo cansaço que parece ter a ver justamente com este trabalho de luto de um si-mesmo que ficou para trás e um encontro com a estranha familiaridade de um mundo que não temos certeza se nos reconhecerá.

Curiosa também tem me parecido a expressão que estamos utilizando: “saindo da pandemia”. Estávamos dentro, portanto? E a vida… fora? Acho intrigante, pois lá no começo de tudo isso parecia que nós tínhamos sido tirados de “dentro” de nossas vidas e lançados em mares não navegados. Talvez tenhamos nos acostumado às nossas embarcações e tenhamos feito delas refúgio e intimidade. 

Agora parece que precisamos ter a sabedoria de, junto aos outros tripulantes, encontrarmos terra firme e recolher as velas – para então, finalmente, podermos velar os mortos, aqueles que infelizmente foram tragados pelas ondas deste mar tão profundo.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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