Opinião
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17 de dezembro de 2021
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09:14

A obtusa tentativa de privatização do saneamento no RS: o caso de Rio Grande (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Foto: Divulgação/Corsan
Foto: Divulgação/Corsan

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

A Prefeitura de Rio Grande anunciou, dia 16 de dezembro, a assinatura de Termo Aditivo no Contrato de Programa firmado com a CORSAN para prestação dos serviços de saneamento, com a justificativa de adequação ao Novo Marco Regulatório (Lei 14.026/2020). Argumentou que a decisão passou por avaliação técnica e que algumas das medidas já haviam sido tomadas por outros Municípios. Duas questões parecem, a priori, ser mera adequação legislativa, a antecipação das metas de esgotamento sanitário e de abastecimento de água, temas que já são tratados com rigor pelo Plano Municipal de Saneamento, amplamente debatido com a população em 2013.

A terceira questão não é apenas controversa, mas de legalidade absolutamente questionável, ou seja, a aceitação da privatização da CORSAN como hipótese, justificando essa possibilidade com a reversão de parte dos valores obtidos com a venda da estatal ao Município, pelo Governo do Estado. O problema aqui não é só político, mas possui fortes implicações jurídicas e, no meu entendimento, não admitidas pelo sistema jurídico constitucional. Vamos por partes.

Primero, o instrumento que rege a relação entre o Município e a CORSAN é o que chamamos de Contrato de Programa, ou seja, um modelo híbrido de contato-convênio, no qual o poder titular (Município) firma uma parceria com o detentor do serviço (Estado) para que último, por órgão da administração direta ou indireta, preste determinado serviço público. O Contato de Programa, como envolve dois entes públicos e possui metas amparadas pelo interesse público, não está sujeito à certamente licitatório concorrencial. Na prática, a principal motivação é exatamente o fato de estar amparado em objetivos comuns, no caso a ampliação do serviço de saneamento, através da conjugação dos esforços das duas esferas de poder, diferente dos contratos com entidades privadas, nos quais os interesses são opostos, serviço público de um lado, lucro de outro.

No caso de Rio Grande, além da expansão da rede de água e de esgoto, o Contrato também previa a transferência de parte da receita arrecada pela CORSAN na cidade para o Fundo Municipal de Gestão Compartilhada do Saneamento, cujos valores foram aplicados em diversos serviços, como a melhoria de drenagem urbana, atividade não incluída no escopo institucional da prestadora.

Ocorre que a situação muda completamente quando o órgão prestador sai da esfera de domínio público e passa para o setor privado. Como é de farto conhecimento, empresas privadas, dentro de um sistema capitalista, possuem um único objetivo que é a obtenção de lucro, situação completamente distinta dos serviços públicos.

Havendo mudança da natureza do prestador, ocorrerá o que chamamos de mudança estrutural da relação pois qualquer contrato firmado entre o ente público (no caso o Município) e particulares (eventual adquirente da CORSAN) é passível de concorrência por licitação. A mudança estatutária fere as própria razões do Contrato de Programa, sendo imperativa a ruptura do instrumento.

Lembrar, também, que os Contatos de Programa são longos, e a privatização com a sua continuidade, importa na garantia de um monopólio privado do saneamento no Rio Grande do Sul, com lucratividade garantida, sem nenhuma preocupação concorrencial. Na prática o Estado, por meio de uma manobra política de bastidores, garante um lucro vultoso para o eventual comprador da CORSAN, sem a necessidade de disputar o mercado com outros concorrentes. Isto fere dois princípios constitucionais, o da Moralidade e o da Impessoalidade. Nestas condições, o correto é instaurar o processo de interrupção do contrato de programa e encaminhar nova licitação.

Um segundo aspecto que deve ser relevado, é o argumento apresentado pela Prefeitura sobre compensação material com recursos da privatização. Trata-se de um discurso falacioso, incerto e vazio de significados, incompatível com este tipo de relação contratual. A lógica da gestão dos bens públicos é regida pela certeza do interesse, não sendo passível de submissão a cálculos incertos. Qual será o valor da contraprestação ofertada pelo Estado? – Um percentual de futura a ser auferido quando da venda da CORSAN – Ora, não existe nenhuma transparência ou certeza nesta relação, pois o próprio valor obtido, conforme observado na absurda venda da CEEE, pode ser irrisório, mas os prejuízos de uma mudança estrutural na relação são elevados. 

Contratos firmados pela administração pública devem apresentar objeto certo, ainda mais quando a disposição tem claro caráter indenizatório. Por outo lado, a mudança estatutária pode representar, inclusive, prejuízos para a administração e a sociedade riograndina, pois ao contrário dos Contratos de Programa, que são firmados com base no cumprimento de metas públicas, toda a concessão é medida pela regra do equilíbrio econômico-financeiro, ou seja, a política tarifária vai ser definida pelo mercado, sem nenhuma mediação pelo interesse público. Na verdade, esta regra já prevalece deste a política de privatizações iniciada na década de 1990 e tem apresentado resultados problemáticos para os consumidores em serviços como energia elétrica e na tarifas de pedágio. A CORSAN, como uma empresa pública já estabelecida, com distribuição regional e quadro permanente de servidores, tem demonstrado ao longos dos anos capacidade de absorver os riscos de mercado sem afetar a população. Isto não estará garantido com a transferência do serviço para a iniciativa privada.

Um terceiro problema que não é pequeno trata-se da falta de transparência no ajuste firmado pela atual administração do Município. O contrato assinado entre a cidade de Rio Grande e a CORSAN em 2013 foi objeto de amplo e irrestrito debate com a sociedade, envolveu audiências públicas, apresentação específica para os vereadores, discussão nos meios de comunicação e um dos seus argumento centrais consistia na continuidade do serviço no âmbito da administração pública, já que o mesmo seria prestado por uma empresa estatal. Em todas as discussões havia uma forte preocupação social com os riscos que acompanhariam uma contratação privada, especialmente a elevação de valores tarifários observados em outros Municípios que haviam enfrentado este problema. A mudança proposta pelo atual Prefeito foi realizada apenas internamente, e sustentada em “suposto debate técnico”. Não houve nenhuma transparência, a população não teve acesso aos relatórios e nenhum debate social ocorreu. Aliás, conduta que tem sido observada em diversas áreas da atual administração, a qual simplesmente foge em desabalada carreira da discussão pública. Lembrar que a Prefeitura, o Governo do Estado e a CORSAN não possuem um dono, mas são bens públicos e pertencem ao conjunto da sociedade. Logo, é imperativa a ampla publicidade de todos os assuntos que a envolvem.

A quarta questão envolve os riscos da relação que não são suprimidas por módicas compensações financeiras. Todo contrato de grandes proporções depende de garantias contratuais, como seguro, por exemplo. No caso dos Contratos de Programa, como envolvem entes públicos, o segurador principal é o próprio Estado. Ele não entrará em falência. Caso a gestão serviço de saneamento seja transferido para empresa privada, esta deverá apresentar uma carta de seguros baseada no valor total do contrato. O grande problema de serviços prestados por empresas privadas é o eventual desequilíbrio financeiro, o que pode importar em dois caminhos: no primeiro a empresa entra em falência e a sociedade fica desabrigada da sua prestação; o segundo a empresa passa a sofrer com fatores que impulsionam a queda da lucratividade e iniciam uma pressão para o estado aumentar as tarifas ou reduzir vantagens oferecidas para a população (veja o caso dos serviços de transporte coletivo). Então existe uma série de riscos potenciais que precisam evitados por parte da administração e uma primeira medida obrigatória em qualquer contrato entre o poder público e a iniciativa privada é exigir garantias contratuais.

O quinto problema observado na medida adotada pela Prefeitura de Rio Grande é óbvia. Em nenhuma hipótese pode haver prorrogação do Contrato de Programa dentro de um contexto de ameaça de privatização. Por sinal, esta medida é expressamente vedada pelo novo marco de saneamento. Particularmente entendo que a regra da vedação estipulada na Lei é inconstitucional quando não há ameaça de privatização, pois restringe a autonomia dos entes federativos em firmar convênios. Mas é válida em condições de possível transferência da prestadora para a iniciativa privada. Embora este tema não seja claramente apresentado pela Prefeitura de Rio Grande, foi observado em outros Municípios. Lembrar que a cidade pode optar por criar uma empresa de saneamento local autônoma, situação na qual a concessão do serviço torna-se desnecessária.

E por último, o elemento político-ideológico. A privatização do serviços de saneamento é um equívoco grotesco por parte da administração em qualquer dos níveis, e coloca em risco a saúde e a segurança da própria população. Visa transferir um serviço altamente lucrativo, que fornece rendas significativas ao estado, apenas para satisfação ideológica. Não existem experiências de sucesso na transferência do saneamento para a iniciativa privada. Quem acompanha o avanço dos indicadores da COVID-19 na América Latina, sabe que um dos motivos para o Peru ter a mais alta taxa de mortalidade pela doença em todo o planeta é exatamente o fato dos sucessivos governos neoliberais de Fugimori e seus seguidores ter privatizado todo o saneamento do país. Resultado, sobra água nas regiões ricas, mas faltam os serviços mais básicos para a população mais pobre. O mercado busca lucro e não a satisfação da sociedade, é uma lógica completamente distinta do interesse público. Várias cidades europeias que aderiram à orgia das privatizações dos serviços de saneamento voltaram atrás, em países como Alemanha, França e Espanha. Logo, a privatização somente se justifica na ideologia ultrapassada de alguns governantes que pensam com a mente dos Chicago Boys da década de 1970. A Pandemia demonstrou o quão importante são os serviços públicos para a sociedade e para o próprio mercado, que acaba dependendo da seu funcionamento em áreas como saúde, educação, assistência social e, obviamente, saneamento. Desta forma, a artimanha montada pela dupla Leite-Branco terá como vítimas diretas a própria população rio-grandina. 

(*) Advogado, doutorando em sociologia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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