Opinião
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14 de dezembro de 2021
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09:08

A fábrica feral de pandemias (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Por
Sul 21
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Exportação de animais vivos em sistema de hiperconfinamento em navios (Foto: Magda Regina)
Exportação de animais vivos em sistema de hiperconfinamento em navios (Foto: Magda Regina)

Sandro Ari Andrade de Miranda (*)

Basta uma leitura do último livro de Rob Wallace, para constatar o peso que o atual modelo de agronegócio possui tanto na emergência de novas doenças, como no avanço das mudanças climáticas. Nestes estudos, Wallace reforça argumentos já apresentados em décadas anteriores por Peter Singer, atestando que a cultura especista da indústria alimentar, além de executar práticas que ofendem princípios da moralidade civilizatória, também cria as condições para a autodestruição da sociedade. Antes da covid-19, temia-se que uma onda agressiva de gripe aviária (influenza H5N1) atacasse o planeta com força semelhante à da pandemia de gripe suína no início do século XX. A febre de Nipah e o ebolavírus, também se apresentam com o selo pandêmico.

Mas, por que tais riscos sanitários originados do mercado de alimentos surgem com tanto frequência e com intensidade cada vez maior?  Talvez a resposta não esteja na biologia de Wallace, nem na discussão ética de Singer. A antropóloga Ana Tsing, nos oferece um argumento preciso para debatermos este tema. O ser humano não é a única força que existe no planeta, talvez, na sua versão necrocapitalista, seja a mais destrutiva, mas o mundo resiste silenciosamente à nossa ilusão de superioridade por meio da reação feral dos microrganismos. Sim, vírus e bactérias existem. E diferente das espécies que ficam sujeitas ao olhar predatório de traficantes de animais ou de grandes pecuaristas, eles buscam constante evolução aproveitando as brechas deixadas por nossa sanha destrutiva. 

Quando falo em destruição, não estou abordando apenas os milhões de hectares de mata nativa que são queimados criminosamente para a introdução do gado ou da soja. Mas incluo nesta discussão a criação de milhões de bovinos, suínos e de bilhões de aves, em ambientes de hiperconfinamento, sem ventilação adequada e com o uso intensivo de antibióticos para suprir a falta de higiene. E pasmem, esta orgia destrutiva é aceita pelos padrões sanitários e ambientais de muitas das grandes potências que se travestem da preocupação com a vida. Não é surpresa, portanto, que os primeiros casos da doença da “vaca-louca” fruto da ação insana de empresários que alimentavam herbívoros com ração produzida à base de proteína animal, tudo em nome da eficiência para “aumentar a oferta de carne”, surgiram na rica Inglaterra.

Não estou aqui defendendo que todos e todas optem por uma dieta vegetariana ou vegana, até porque o veneno encontrado sobre a pele de um tomate, provoca uma série de complicações no sistema digestivo, situação idêntica pode ser encontrado numa inocente cenoura. E os agrotóxicos utilizados para a produção de soja, eliminam boa parte da biodiversidade polinizadora. O que eu desejo chamar atenção é para a insana prática da indústria de alimentação, além das estratégias ultrapassadas de exportação de animais adotadas em diversos países, que estão conduzindo a própria vida humana ao colapso.

Os riscos do capitalismo (e não da modernização, como afirma Ulrich Beck), são produzidos no mesmo momento em que as riquezas. Se Marx já havia denunciado no século XIX que o lucro dos capitalistas é o produto do sangue dos operários fabris, não tenho dúvida em afirmar que o lucro da indústria alimentícia é produzido com o risco à vida e à saúde de consumidores e do planeta. E esta onda tem que parar, sendo fundamental a organização da sociedade para exigir, inclusive dos programas de futuros governantes, a adoção de medidas rígidas de segurança alimentar, sanitária e ambiental na produção de alimentos, inclusive coibindo o financiamento de projetos agropecuários que se utilizem de práticas destrutivas contra a vida. Dinheiro de financiamento público deve ser destinado à produção de alimentos saudáveis e ambientalmente responsáveis, e não para commodities de exportação.

Também é urgente extinguir com práticas desumanas e perigosas sob o ponto de vista sanitário e ambiental, como a exportação de animais vivos em sistema de hiperconfinamento por meio de navios, como o observado na cidade de Rio Grande em 10 de dezembro passado. Parece incrível que mesmo os 5,3 milhões de mortos por covid-19 em todo o mundo ainda não abriram os olhos da sociedade para essa fábrica de pandemias.

(*) Advogado, ambientalista, doutorando em sociologia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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