Opinião
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19 de outubro de 2021
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07:54

Os filmes pensam o mundo (Coluna da APPOA)

Enéas de Souza (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Enéas de Souza (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Lucia Serrano Pereira (*)

Recém lançado o livro de Enéas de Souza, Os filmes pensam o mundo. Uma viagem intensa pelo cinema e sua crítica, viagem que reúne os belíssimos ensaios de Enéas a partir de uma seleção de filmes e do trabalho dos diretores que marcam grande cenas pelas quais transitamos. Linha de passe, Bacurau, O som ao redor, O homem que copiava, Guerra ao terror, Era uma vez em Nova Iorque, Sarabanda, Hiroshima meu amor, Camille Claudel, só para citar alguns, de tempos sobrepostos. E na abertura os ensaios em torno de obras de Eduardo Coutinho, forte homenagem. Ensaios que praticamente dialogam com os diretores que com seus filmes configuraram, podemos dizer, nosso mundo. Tarantino, Alain Resnais, Bergman, Cronenberg, entre eles, Furtado, Kleber Mendonça, Walter Salles, entre os nossos. 

Enéas nos conta o quanto a crítica e o cinema foram sempre para ele aprendizado, encontro e confronto de ideias, e, fundamentalmente, uma paixão: “a intensa paixão da ficção e do pensar”. Festa de afetos e pensamento, nos diz. E isso nos joga nesse universo em que destaca que o cinema, acima de tudo, é para ele uma alegria de viver, e nisso encontramos a vibração e o amor pelos filmes. Acompanhamos  a abertura de um caminho tramado com sua vida, de se achar na vida, sonhar e pensar. 

Divulgação

 Como acontece? Para sua geração o cinema – na tela grande – marca uma maneira ao mesmo tempo de desfrutar fortemente do prazer ( isso ele não diz diretamente mas quase que salta para fora do livro) e de armar um pensamento sobre o próprio cinema, sobre o Brasil e sobre o mundo. A cultura contemporânea sempre presente, a propriedade dos filmes de nos proporem questões sobre nosso tempo, contexto. Puxar isso da obra, leitura, mas a partir do se deixar afetar. 

Esse amor de uma geração me lembra um outro filme, Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci, onde os jovens do Cahiers du Cinéma se apinham na sala de cinema, brincando, falando, efervescendo, fumando e bebendo, namorando, fazendo política e praticamente recitando as falas junto com os personagens na tela. 

O cinema vem apresentado como um universo de questionamentos, permeado pela história, literatura, política, filosofia e pela arte em suas múltiplas formas. Sempre no fio da navalha de uma sociedade em movimento, viva. Nada aqui é fixação.

E claro, vem junto com a psicanálise, onde retoma: “Freud, se fosse crítico de cinema, diria que o cinema mexe com o mal-estar na civilização”. É pela ficção que podemos muitas vezes dizer, fazer o encontro do que nos interroga, vida e morte, com as questões com as quais temos que nos defrontar e achar lugar de sujeito.

Ao saírmos da sala/ensaios do cinema, da reunião de textos que surgiram em primeiro na Teorema, uma segunda volta: encontramos o desdobramento da temática do cinema como “energia, ficção e pensar”. Ação crítica: como os cineastas trazem para a obra, como eles põem em imagens a energia e a dinâmica deste mal-estar. 

Para Enéas o ponto crucial da análise do cinema está no que chama de o pensamento em imagens do cineasta. Imagem, tema pulsante no livro, abrindo toda sua riqueza e complexidade. Cria uma teoria sobre o cinema em três pontos: o pensar que esta contido no próprio desenvolvimento da cena dramática; o pensar que traz a encenação como uma concepção cinematográfica; e um pensar sobre o homem e o mundo. 

Em conversa, Enéas nos diz: minha tentativa é a de dizer o que o filme mostra pelas imagens e emoções levando, construindo esta relação em palavras. A imagem, ela é que queima a gente (parafraseando Didi-Huberman em seu livro A imagem queima). E nesse transporte nos leva desde o filme naquilo em que ele é movimento, corpo, som, ângulos, materialidades – sempre me lembro como apresentou Hamlet no observar o castelo, através do olhar sobre a luz e a sombra ja na primeira cena, os recantos, o clima denso que anuncia a tragédia. Texturas, movimentos, cortes e continuidades. É na imagem, no plano que o pensamento do filme vai se revelando, e Enéas leitor afetado e implicado na criação da crítica.

Livro aberto, se entra por onde se quer. Por um filme, por um texto, ou mesmo compondo, como brincamos, um pocket curso de cinema.

“[…] Uma forma de cada um desejar ser em movimento, em vir a ser, sempre tentando criar e inventar, provocar novos engenhos a partir do cinema e da vida. Porque a vida nos força a pensar e nos convoca a tomar posições”.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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