Opinião
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5 de outubro de 2021
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07:35

Correntes (por Gerson Smiech Pinho)

Olga Tokarczuk, autora de
Olga Tokarczuk, autora de "Correntes" e Prêmio Nobel de Literatura (Facebook/Reprodução)

Gerson Smiech Pinho (*)

Pouco conhecida do público leigo, a Síndrome de Detoxificação Perseverativa tem como característica principal a atração por tudo que é imperfeito, deficiente, quebrado ou roto. Quem é acometido por tal doença expressa um peculiar interesse por formas indistintas, demonstra inclinação pelos erros na obra da criação e uma predileção incomum pelo que não se enquadra na norma ou que escapa às estatísticas. Logo nas primeiras páginas de “Correntes”, a narradora do livro alerta que ela própria é acometida por este mal, o que já evidencia de antemão a fonte do que será exposto no decorrer da obra.

Originalmente publicado em 2007, “Correntes” é o livro recém traduzido para o Português da escritora polonesa Olga Tokarczuk, premiada com o Nobel de literatura. A obra é composta por mais de 100 histórias que têm como principal fio condutor o movimento, as passagens e os deslocamentos. Por grande parte dessas inúmeras narrativas, circulam aviões, trens e barcos conduzindo viajantes em trânsito por diferentes espaços e por tempos variados. Contudo, longe de compor um diário de viagens afeito à descrição de lugares conhecidos ou de pontos turísticos badalados, o volume de quase 400 páginas transita por paisagens bastante inusitadas, tais como um recinto repleto de vísceras e fetos humanos ou um apartamento abandonado.

A própria narradora, no início do livro, afirma nunca ter sido fã de museus de arte, preferindo substituí-los “pelos gabinetes de curiosidades onde se coleciona e expõe objetos raros, únicos, bizarros e disformes. Aquilo que existe na sombra da consciência e que, quando você espia, foge do seu campo de visão.” (p. 26) Desse modo, ao escrever sobre andanças e travessias, Olga Tokarczuk convida quem lê a lançar um olhar oblíquo sobre o espaço ao redor para desvelar pormenores que costumeiramente passam despercebidos. Como afirma em uma das passagens do livro, “o mundo está em demasia. Seria sensato diminuí-lo em vez de expandi-lo ou ampliá-lo. (…) Espreitar nele por um buraco pequeno, como no Fotoplastikon de Varsóvia, maravilhando-se com cada detalhe.” (p. 65) Desse modo, as correntes que vertem por entre as páginas dessa obra conduzem a um universo que lança luz sobre minúcias e miudezas, espalhadas por narrativas que variam desde poucas linhas até muitas páginas.

Ao longo do livro, a passagem de uma história à outra é descontínua e ocorre em cortes que surpreendem e conduzem ao inusitado. Assim, a escrita da autora não se atém a uma narrativa linear, tampouco se fixa na circularidade da repetição. Ao contrário, seu texto está em constante movimento, apegado tão somente à liberdade associativa que conecta um trecho ao outro, o que proporciona o permanente encontro com o imprevisto a cada novo fragmento apresentado.

Além de acompanhar o trânsito dos inúmeros personagens em suas andanças pelo mundo, “Correntes” também discorre sobre a subjetividade do viajante e de como o movimento se inscreve no transcurso da vida. É assim que, no trecho intitulado “Psicologia de viagem: Lectio brevis I”, o desejo é definido como um termo fundamental: “É ele que coloca o ser humano em movimento, indica o rumo e estimula nas pessoas a afeição a algo. O desejo em si é vazio, ou seja, indica apenas o rumo, mas não o objetivo, pois o objetivo sempre permanece fantasmagórico e pouco claro; quanto mais próximo estiver, mais enigmático se torna. É impossível alcançar um objetivo assim, tampouco saciar o desejo.” (p. 80)

Se o cotidiano é normalmente acompanhado de continuidade e de repetição, em tempos de confinamento, esta situação tende a se intensificar. Com a redução da circulação e com grande parte das atividades realizadas sobre a superfície das telas, desponta a paradoxal sensação de atividade sem deslocamento.

Nesse contexto, a leitura de “Correntes” é uma experiência interessante – proporciona passeios por territórios longínquos e por tempos diversos. Na companhia dos sujeitos itinerantes e inquietos, criados por Tokarczuk, somos convidados a transitar pelas paisagens estranhas e ao mesmo tempo familiares que nos habitam.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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