Opinião
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20 de setembro de 2021
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11:54

Jacobinismo rápido de Bolsonaro e a lentidão da nossa unidade pela República (por Tarso Genro)

Bolsonaro falando para apoiadores na Avenida Paulista. (Foto: Isac Nóbrega/PR)
Bolsonaro falando para apoiadores na Avenida Paulista. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Tarso Genro (*)

“Poderemos viver juntos? Iguais e
diferentes. Tudo se mistura; o espaço
e o tempo estão comprimidos”

(Alan Touraine)

Sem exceção, os golpes e assaltos fascistas ao poder reuniram sempre quatro condições mínimas para terem sucesso e chegarem a governar sozinhos: uma grave crise econômica em curso, o desprestígio da esfera da política provocado para facilitar o ascenso de líderes totalitários, um forte apoio material e político de pelo menos uma parte significativa das classes dominantes internas e a fragmentação dos que defendiam, por princípio, República e Democracia. Todas estas condições estão atualmente reunidas no Brasil. Assim não viveremos juntos.

A dúvida e a certeza – na ação política – têm uma enorme influência sobre qual a correlação de forças que vai estar viva, após a superação de uma disputa de princípios entre adversários ou inimigos, no palco da História. No caso do Brasil, o mais correto seria falar “entre inimigos”, pois Bolsonaro tornou inimigos todos os que, independentemente de serem de direita ou de esquerda, defendem a Lei e a Ordem a partir do que foi ordenado pela Constituição de 88.

Bolsonaro veio em nome da tortura “destruir” e eliminar dúvidas sobre para onde devemos ir: para o espaço de um tempo comprimido pela dor, onde uma violência contra a democracia sucede outra mais grave, como se isso fosse um caminho fatal e incontornável, prescrito por leis naturais.

Bolsonaro é um jacobino de extrema direita, seja pelos problemas de ordem psicológica que ele exibe todos os dias, seja por treinamento dos seus reflexos condicionados.

A tradição da boa “dúvida”, na razão ilustrada, está bem posta na frase vitoriosa de De Gaulle, quando do enfrentamento da insurreição estudantil de maio de 68. Sua sentença foi uma resposta aos anúncios dos órgãos de segurança do Estado que iriam prender Sartre: “mas não se pode prender um Voltaire” (ou Danton, segundo outras fontes), foi o que disse o De Gaulle. E promoveu a refundação da República depois da humilhante ocupação alemã.

A tradição da “certeza” como autoritarismo ou tentação totalitária, por outro lado, está bem posta na frase de Carl Schmitt (autor de uma “Teoria da Constituição” entre outras obras célebres), frase em que ele reza: “o Führer comanda o Direito!”. Às vezes estes contrários se fundem, em outras oportunidades se repelem e se reconstroem na sua estética política.

Retomo um brilhante texto de Maria Rita Kehl no seu artigo “Civilização Partida” (Civilização e Barbárie, Cia. das Letras, págs.104\105), que ajuda a analisar os contextos nos quais as narrativas historicistas deixam sombras inexplicáveis. São sombras que cobrem “o entendimento do sujeito solar, racional e autocentrado, – que a modernidade constituiu” – confrontado com o entendimento do sujeito do poema de Ungaretti, que “percebe o seu ‘eu’, como um mísero barquinho (é) entregue às correntes e às tempestades do oceano libidinoso, que ele não controla”: é a força da razão ilustrada como “dúvida”, de um lado, e a força da fatalidade da natureza equivalente à “certeza”, de outro. Pela dúvida eu posso optar pela certeza, pela qual – todavia – eu fico atado às minhas próprias palavras. Pela certeza sem dúvidas eu suprimo o ato de voltar a pensar.

Quando quem está no poder age com a certeza jacobina em direção ao totalitarismo e quem está fora do poder, do lado da democracia, deixa de usar a dúvida, como método para compor uma estratégia única de resistência – para salvar a ordem democrática – vence o lado perverso da razão totalitária, não seu sentido emancipador ilustrado.

Refiro-me àquelas conjunturas do mundo moderno em que os dois sistemas de pensamento da modernidade põem em confronto “a tradição da dúvida”, aberta para o diferente, criativa e pouco autoritária”, de De Gaulle, (…) e a “tradição da certeza”, como “tradição autoritária(…) de um pensamento único (de) intolerância com o estranho”, provinda do pensador do direito nazista, Carl Schmitt, até hoje cultuado como um “cientista” do Direito.

No extremo do seu desgaste, com o fracasso do “putsch” de 7 de setembro, Bolsonaro obteve também vitórias. Ele estancou a perda de energia do seu protagonismo político, de um lado, e igualmente demonstrou que – faça o que fizer no cenário institucional do país – continuará livre e inimputável, por carência de unidade estratégica entre os que querem barrar sua vocação fascista.

De outra parte Bolsonaro também conquistou uma posição de negociação junto a uma Corte Suprema no limite de sua capacidade de resistência às hordas de facínoras, por ele estimuladas a assaltarem o Estado, embora esteja em andamento um processo silencioso que pode salvar o Brasil da ditadura: um diálogo horizontal na base da sociedade, entre os movimentos com base social combativa e um diálogo entre os partidos e os movimentos políticos em rede (de caráter partidário ou não); mais uma aproximação entre as eventuais candidaturas democráticas – ainda com dificuldades -que vem sendo estimulada por relações (em rede), entre lideranças da sociedade civil e quadros de partidos de diversas origens.

Os dez mais fortes líderes políticos do país, independentemente das suas legítimas pretensões eleitorais, deveriam ter uma voz pública única, em torno de alguns compromissos mínimos, para os enfrentamentos que vêm por aí: defesa inequívoca da Constituição de 88 e do processo eleitoral – sem abrir mão do impeachment -; legitimar a pretensão de formar não somente uma terceira via, mas de mais “vias”, que se comprometam a apoiar qualquer candidato que chegue no segundo turno contra Bolsonaro; ajustar, desde logo, os fundamentos de um plano unitário emergencial contra a fome e o desemprego, a ser aplicado imediatamente a partir de 2023.

A complexa situação política, externa e interna, recomenda que as forças democráticas, de esquerda ou não, se unam em torno dos valores (democráticos) e em torno da construção de muralhas políticas capazes de colocar os fascistas de volta às lúgubres cavernas de onde saíram. Assim, então, estaremos prontos para construir novas alternativas, disputadas dentro dos preceitos republicanos e democráticos que deverão renascer.

Jogar toda a nossa atenção e energia somente direcionando-as para o processo eleitoral de 22 pode permitir que não haja futuro para nenhuma força política democrática, caso em que as curtas conjunturas dos tempos políticos concentrados poderão se tornar uma longa e plana rotina totalitária. E daí, definitivamente, não viveremos juntos senão pela guerra ou pela indiferença, atravessadas pelo caos e pela morte. Queremos viver juntos e longe da selvageria fascista que hoje vem se tornando caos na sua rotina enlouquecida.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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