Opinião
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3 de setembro de 2021
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08:16

A causa ignorada dos assassinatos de mulheres (por Telia Negrão)

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Telia Negrão (*)

Os dados do último Atlas da Violência 2021, publicados esta semana, são alarmantes do ponto de vista populacional. E gritantes para as mulheres. Vivemos num país de muita violência, com mais de 2 milhões de armas em circulação nas mãos de civis, mas sequer sabemos como e por que morremos.

O Brasil registrou 45.503 homicídios no ano de 2019, uma taxa de 21,7 mortes por cada 100 mil habitantes. Somados 10 anos, de 2009 a 2019, os números chegaram a 623.439, mas pode ser que esse quantitativo, de um país em guerra, seja muito pior. É uma guerra na qual não se sabe bem como ou por que alguém perdeu a vida, indicativo de que algo mais grave está acontecendo.

Segundo o relatório, um dos aspectos mais sérios na medição dos índices de mortes violentas no Brasil diz respeito aos óbitos sem causa determinada, que têm como sigla MVCI (Mortes Violentas por Causa Ignorada), que subiram de 12.310 em 2018 para 16.648 em 2019, uma alta de 35% em cada ano. Aplicada esta taxa nos 10 anos, teríamos 713.195 mortes por causas violentas no país.

As MVCI são mortes por causas externas ou violentas sobre as quais não se consegue definir porque a pessoa foi a óbito ou a motivação que gerou o fato. Assim, uma morte violenta por causa externa pode ser tanto um acidente de automóvel, um atropelamento, uma briga de rua, um corpo abandonado, mas pode ser também um feminicídio. 

A má qualidade da informação é a justificativa principal apontada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que ao lado do IPEA e Instituto Jonas dos Santos Neves, elaboraram o estudo deste ano a partir de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) com bases nos atestados de óbito, ambos do Ministério da Saúde.

Quando a causa não foi explícita, ou não se investigou ou não se “enxergou” a causa, aí mora um perigo mais sério se crimes acontecem dentro de casa e são naturalizados pela cultura e pelos costumes. A violência contra as mulheres só se tornou um problema público há quarenta anos no Brasil, com ocorrências a cada minuto.

Segundo Daniel Cerqueira, que analisou os dados gerados do Atlas da Violência de 2013, naquele ano cerca de 73,9% das mortes violentas sem causa identificada (MVCI) eram homicídios. Ou seja, aplicando-se nos números atuais, dos 16.648 casos não identificados, 12.302 seriam homicídios e não causados por acidentes sem uma motivação.

E o problema maior, segundo ele, se aplica no caso das mulheres. Em 2019, para cada mulher vítima de homicídio havia uma morte classificada como MVCI:  3756 mortes sem causa determinada ante 3737 assassinatos. Quantos desses foram feminicídios? Crimes com motivação de sexo/gênero, combinados com outras motivações, como raça e etnia, deficiência, orientação ou identidade sexual, por tráfico de pessoas, migração, entre outros?

Assim, levando em conta os dados do MVCI de 2019, analisados pelo Atlas da Violência, o estudioso avalia que 2775 casos de mortes de mulheres por causas violentas podem não ter entrado nas estatísticas por “má qualidade da informação”.

Essa, por sua vez, pode ser originada por falhas na investigação, nas dificuldades dos Institutos de Medicina Legal que periciam os casos, no tempo que demora para que os dados sejam gerados, o que compromete a eficiência de um dos mais importantes instrumentos de análise e elaboração de políticas públicas, que é o Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde. 

Para nós, que acompanhamos cotidianamente a ocorrência dos assassinatos de mulheres no Brasil – 50.550 entre 2009 e 2019 – e invariavelmente questionamos as reais motivações que possam levar à qualificação como um feminicídio, este problema de desconhecimento da causa da morte é um elemento chave. 

Segundo pesquisa recente do Instituto Sou da Paz, 51% das mulheres vítimas de violência no Brasil morreram pela ação de armas de fogo nos últimos 20 anos, sendo que das vítimas por esse meio 70,5% eram mulheres negras e jovens. 

O descaso, o apagamento, a legitimidade da desigualdade social, da violência de gênero  e o racismo estrutural ao longo da história, foram e continuam sendo os maiores condicionantes para a persistência do problema e da falta de instrumentos legais e de políticas públicas para enfrentá-lo. Algo que é intolerável frente a uma premissa de direitos humanos e de cidadania. Onde afinal estão os direitos das mulheres?

Com dados de melhor qualidade poderíamos questionar por que, caindo 26,9% das mortes violentas de mulheres brancas, aumentam em 2% as mortes de mulheres negras, que são 67% das vítimas de assassinatos? Por que caíram as mortes de mulheres fora de casa em 28,1%, aumentaram em 6% dentro de casa? Como foram assassinadas as 3967 pessoas trans em 2019, 5,6% mais do que em 2018? O que levou ao assassinato de 5335 pessoas homossexuais ou bissexuais? Quantas destas mortes ocorreram em razão de gênero, raça, sexualidade? Por que cresceu em 21% a mortalidade entre as pessoas indígenas em 10 anos?

Como se pode ver, a falta de dados precisos sobre as causas de morte no Brasil gera enormes consequências, que evidenciam a fragilização dos instrumentos, o sucateamento de mecanismos e o desfinanciamento de políticas e serviços com enfoques de gênero, raça e outras interseções com a não execução de orçamento federal e dos estados para enfrentar a violência. A pandemia agravou o quadro de desigualdades sociais e o registro no aumento de feminicídios em várias regiões do país, afetando populações muito vulneráveis, como de mulheres indígenas. Como isso será medido?

A falta de preparo de agentes públicos responsáveis por investigar as mortes violentas de mulheres, o desconhecimento das leis e normas que regem os crimes, como a Lei do Feminicídio e as “Diretrizes Nacionais para Investigar, julgar e punir os crimes violentos contra as mulheres com a perspectiva de gênero” e o abandono das políticas públicas especializadas nos levam a crer que  a invisibilidade social e histórica das mulheres enquanto uma parcela imensa da população está flagrante também na sua morte, quando sequer a diligência devida não é feita e a causa de sua morte é dada como “desconhecida”.

 (*) Jornalista, cientista política, integrante do Levante Feminista Contra o Feminicídio

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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