Opinião
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17 de agosto de 2021
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12:37

Garabi e Panambi agravariam destruição do rio Uruguai, de suas matas e de sua sociobiodiversidade (por Paulo Brack)

O Parque do Turvo perderia mais de 60 hectares de vegetação ciliar e teria comprometido o Salto do Yucumã. (Foto: Município de Derrubadas/Divulgação)
O Parque do Turvo perderia mais de 60 hectares de vegetação ciliar e teria comprometido o Salto do Yucumã. (Foto: Município de Derrubadas/Divulgação)

Paulo Brack (*)

A teimosia em levar adiante a proposta de construção das hidrelétricas de Garabi e Panambi, no rio Uruguai, por parte do governo federal, via Eletrobras, sofreu recentemente um revés do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Um dos pontos para este impedimento trata-se da presença do Parque Estadual do Turvo, criado em 1947, no noroeste do Rio Grande do Sul, onde ocorrem os principais remanescentes florestais mais contínuos que escaparam do imenso desmatamento da região do Alto Uruguai, ocupado pelas monoculturas de soja, e onde se abriga a maior riqueza de fauna ameaçada de todo o Estado. 

Com a possibilidade de construção da UHE Panambi, no município de Alecrim, o Parque do Turvo perderia mais de 60 hectares de vegetação ciliar e teria comprometido o Salto do Yucumã. Os projetos das hidrelétricas de Panambi e de Garabi, esta última no município de Garruchos, teriam áreas de alagamento, respectivamente, de 33 mil hectares e 66 mil hectares, ou seja, juntas somariam cerca de 99 mil hectares, o que corresponderia praticamente ao dobro da área de alagamento da polêmica e desastrosa hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

A implementação destes dois projetos, também chamados de Complexo Hidrelétrico Garabi-Panambi, desconsideram os enormes passivos ambientais de vários outros empreendimentos hidrelétricos já realizados, desde duas décadas atrás, na bacia do rio Uruguai (UHE Itá, UHE Machadinho, UHE Barra Grande, UHE Foz do Chapecó, UHE Garibaldi, UHE Campos Novos), que implicaram em irregularidades, resultaram na expulsão de dezenas de milhares de pessoas de suas terras, incluindo ribeirinhos, pequenos agricultores e populações de cidades, como bem destacou o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB). Num destes empreendimentos, o município de Itá ficou em sua maior parte da área urbana embaixo d´água. Ademais, os poços de captação de água em propriedades na proximidade do lago da hidrelétrica, ficaram altamente comprometidos pela contaminação do lençol freático, devido à poluição do corpo d’água  que correspondia a um curso de águas correntes (ecossistemas lóticos, com correntezas que proporcionam a oxigenação natural das águas) em lago (ecossistemas lênticos, com águas praticamente paradas, submetidas à eutrofização, ou seja, poluição biológica decorrente da alta carga de nutrientes e poluentes no rio). 

A alteração da qualidade das águas do rio Uruguai ocorre em grande parte pelo excesso de nitrogênio e fosforo, decorrentes dos adubos químicos das monoculturas agrícolas, que escoam com as chuvas para rios e córregos, também pela ausência de saneamento nas cidades da região, pela suinocultura sem tratamentos de dejetos, pelo assoreamento pela atividade da agricultura industrial, agravada pela ausência da oxigenação natural das corredeiras e pequenas quedas do rio e de seus tributários. 

O acúmulo de detritos represados nos barramentos e restos de árvores e vegetação afogada causa grandes explosões de populações de cianobactérias, ou algas azuis, que liberam toxinas neurotóxicas e hepatotóxicas a seres humanos, com diminuição da qualidade da água pelo aumento da demanda bioquímica de oxigênio (DBO), ou seja, níveis baixos de oxigênio nos cursos de água e poluentes biológicos decorrentes da eutrofização que também causam a morte de peixes e outros organismos, além de provocar odores fortes na água do rio, situação vivida nas represas de Foz do Chapecó, Itá, Machadinho, entre outras. Um efeito dominó, desastroso, que é escondido nos estudos de impacto ambientais encomendados pelas empresas do setor elétrico gananciosas pelo lucro acima da qualidade ambiental. 

A água torna-se praticamente imprestável. A pesca e o pescador acabam desaparecendo. Os ribeirinhos e os agricultores familiares ficam sem sustento, indo viver de forma precária na periferia das cidades, profundamente afetados psicologicamente pela perda de suas terras e seus modos de vida associados ao rio Uruguai. Os peixes nativos desaparecem, sendo o caso do dourado, do grumatã e do surubim, entre outros, que necessitam de pelo menos 70 ou 80 km de rios com corredeiras e sem barramentos, para realizar sua piracema, o que se torna este processo reprodutivo impossível, devido a tantas represas em um mesmo rio ou bacia. A extinção é para sempre e, sendo provocada por atividades humanas, está vedada no inciso VII do parágrafo 1º do Artigo 225 da Constituição Federal. 

No atual quadro com mais hidrelétricas, será possível manter estas e outras espécies de peixes e demais centenas de organismos de rios e matas ciliares em aquários, zoológicos e jardins botânicos? E o que dizer das secas cada vez mais frequentes nos nossos rios do sul do Brasil, pelas mudanças climáticas e destruição das nascentes que vêm inviabilizando a produção de geração de energia elétrica? Com as mudanças climáticas e com a perda das nascentes, o esgotamento da geração hidrelétrica está dado no Brasil e no mundo. O potencial de geração de eletricidade a partir dos ventos e do sol no Brasil seria suficiente para cobrir duas ou três vezes o que se gasta hoje de energia elétrica. 

O curso médio e os cursos das cabeceiras do rio Uruguai, perdendo suas matas ciliares e  suas corredeiras, tornam-se alvos fáceis de organismos exóticos invasores, como o caso do mexilhão dourado, espécie de molusco que foi trazido não intencionalmente, há algumas décadas, da Ásia, em águas de lastros de navios, comprometendo inclusive o funcionamento das turbinas das hidrelétricas. Assim, o principal rio da região e seus tributários, com o agravante do aumento de agrotóxicos das imensas lavouras de soja, consumidoras de herbicidas e inseticidas, estão entrando em um processo de poluição crescente e morte paulatina dos seus ecossistemas e de sua biocenose, ou seja, sua comunidade biológica que vive, ou vivia, ali há centenas ou muitos milhares de anos.

Está evidente o comprometimento da qualidade da água, com a potencial extinção em massa de flora e fauna, provocando um colapso ecológico ainda maior, superando os limites da capacidade de suporte dos ecossistemas do rio Uruguai, submetido a tantos barramentos já realizados. Este rio e seus tributários, com mais de meia centena de Usinas Hidrelétricas (UHEs) e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), estas até 30 MW, já deram sua contribuição na geração de energia elétrica. Entretanto, em 2015, constatamos, com base em dados da Agencia Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a existência de 278 projetos novos empreendimentos na bacia do rio Uruguai, entre PCHs e UHEs. Por que não considerar os limites necessários da capacidade de suporte e resgatar a necessária Avaliação Ambiental Integrada (AAI) do rio Uruguai, a ser realizada por instituições independentes, como já feita (FRAG-RIO) há mais de 10 anos pela UNIPAMA e UFSM, coordenada pelo professor Dr. Rafael Cabral Cruz? O Ibama e a FEPAM vão continuar analisando licenciamentos de hidrelétricas de forma isolada ou vão ver o todo da sinergia potencialmente destruidora da biota e dos modos de visa diversos? 

Existe uma raiz autoritária, e de grandes lobbies e empreiteiras, no planejamento de empreendimentos de geração hidrelétrica no Brasil, como destaca o Professor Dr. Célio Bermann da USP. São desconsideradas a Constituição Federal, os marcos legais dos acordos internacionais pró-sociobiodiversidade, entre eles a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), esta que fará 30 anos em 2022. Também estamos presos no século passado e não visualizamos que o Brasil possui potencial elétrico a partir das fontes eólica, solar e de bioenergia diversa, cada vez mais baratas e eficiente do que as hidrelétricas. Como agravante, temos órgãos ambientais desfalcados e fragilizados por ingerências de autoridades políticas. A privatização da Eletrobras seria o tiro de misericórdia em qualquer plano de reorientação necessária, com controle popular, como o caso de repotenciação de turbinas já existentes, que poderiam resgatar entre 5% a 20% de energia com modernização de equipamentos, longe da sanha expansionista e privatista atual deste desgoverno de promoção do vale-tudo em cima da transformação da natureza em lucro efêmero. 

Tais projetos do grande setor elétrico partem da premissa de que os rios são passivos de construção de hidrelétricas sem limites, transformando os ecossistemas de cursos d’água corrente em “escadarias” de grandes lagos de reservatórios de águas paradas, o que também se confronta com o parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal que garante a manutenção dos processos ecológicos e da diversidade biológica, por isso também não podem ser consideradas fontes limpas de energia.

Ignora-se o desaparecimento de muitos milhares de hectares de florestas, de modos de vida e de terras produtivas, bem como desprezam-se alternativas menos impactantes de geração e uso racional de energia. 

No caso do projeto da hidrelétrica Panambi, lembramos que comprometeria irreversivelmente o Salto do Yucumã, o maior salto longitudinal em um rio no mundo, e prejudicaria o principal ponto turístico da região. O possível alagamento não redundaria somente na perda direta de dezenas de hectares do Parque Estadual do Turvo, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral (artigo 8º, II e artigo 11, § 4º, da Lei 9.985/2000), mas afetaria e milhares de hectares de matas ciliares (Áreas de Preservação Permanente) que restaram. Também seriam destruídos corredores ecológicos da fauna, em uma região já ocupada predominantemente pela expansão de uma agricultura de exportação que ignora a sociobiodiversidade local. Recentemente, foi avistada e filmada uma onça (Pantera onca) cruzando o rio, na altura do Salto do Yucumã, entre a Argentina e o Brasil, vinda do corredor Missioneiro que une o Parque Nacional de Iguaçu com esta Unidade de Conservação. Com o alargamento da área da represa potencial de Panambi, isso seria impossível, isolando as populações no RS, o que causaria sua extinção no Estado. A construção destas duas hidrelétricas geraria uma catástrofe irreversível nos ecossistemas, na qualidade da água e na questão social, já dramática pelo êxodo rural na bacia do rio Uruguai. 

Por isso, apelamos à Eletrobras, aos governos e aos políticos que abandonem os projetos de hidrelétricas de Garabi e Panambi que correspondem a mais um grande ataque à Sociobiodiversidade do rio Uruguai, à Constituição Federal e aos acordos internacionais que o Brasil assinou em prol do que resta de um país que foi considerado o campeão na Megabiodiversidade mundial. O prosseguimento deste conflito judicial, injustificável, não interessa a ninguém.

(*) Professor do Instituto de Biociências da UFRGS e membro da Coordenação do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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