Opinião
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27 de agosto de 2021
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16:56

A democracia à beira do abismo (por Céli Pinto)

Tanques
Tanques "desfilam" em frente ao Congresso Nacional. (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Céli Pinto (*)

O Brasil está vivendo uma das mais graves crises políticas e institucionais de sua história.  A democracia brasileira, duramente conquistada, ainda que frágil, está escorrendo pelo ralo com a complacência da maioria da classe política e de muitos atores importantes, fora e dentro do Estado. Desde os primeiros anos da década de 1960, nunca o país esteve tão próximo de uma ruptura institucional como agora.  Seria irresponsável fazer alguma previsão peremptória de um quadro de ruptura.  Devemos, no entanto, dar atenção às condições atuais que possibilitam pensar na gravidade da crise. Elas são muitas, complexas, e vou apenas alinhavar algumas.

A ideia de que o caos institucional deve levar em consideração a figura do atual presidente da república é válida e não deve ser desprezada, pois ele é  um individuo descontrolado,  emocionalmente abalado, com severos limites cognitivos, com um entendimento raso do mundo e que, neste momento, sente-se encurralado por escândalos, pela pandemia e pela baixa popularidade. Certamente tem no seu imaginário a possibilidade de um golpe para se manter no poder após 2022. Mas, para uma aventura desta monta, precisa de apoios fortes. A pergunta então é: a quem interessa um governo ditatorial liderado por um parvo violento?

A resposta poderia ser buscada na família Bolsonaro, cheia de filhos, ex-mulheres, cunhados, cunhadas e a uma grande parentela, que estaria renovando, com um ar carioca, a presença de jagunços na história brasileira. É uma resposta verdadeira, mas não suficiente para explicar que um país de quase 220 milhões de habitantes, com um dos maiores territórios do planeta e uma economia que está entre as 20 maiores do mundo, se submeta a um golpe de estado liderado por uma família associada a meliantes.

Talvez a resposta esteja na Faria Lima, no famoso Mercado. Restam poucas dúvidas de que as classes dominantes no Brasil pagaram para ver. Supuseram que, com um parvo no poder, seria possível – através de outro parvo, um pouco mais alfabetizado, o ministro da economia – radicalizar o neoliberalismo tão ao gosto do império e de seus asseclas coloniais. Para tal, promoveram o desmanche do sistema político, elevaram uma parte do judiciário e um grupo moralmente apequenado de procuradores a salvadores da pátria, prenderam o inimigo e pensaram que tudo estava resolvido. Mas nada deu certo e agora parece que a esperança está em eleger uma espécie de boneco de cera que governa São Paulo como presidente da república. Talvez achassem que o parvo faria o trabalho mais sujo de aumentar a desigualdade vendendo todos os próprios públicos, acabando com as políticas sociais, criminalizando os movimentos, para depois voltarem com alguém com DNA tipo USP, como tanto gostam de alardear.  No final, ficaram com o boneco de cera, com o velho da Havan e com o berrante do cantor decadente. Portanto, em princípio, o golpe não interessa à Faria Lima. Entretanto, frente à iminência de uma nova derrota, ainda podem negociar um arranjo que lhe dê algumas certezas. A defesa da democracia nunca foi seu forte.

Somados aos anteriores, há os grupos claramente não-democráticos do país, aqueles que não disfarçam suas simpatias por regimes autoritários ou ditatoriais. E são muitos, muito mais numerosos e poderosos que os fanáticos das redes sociais. Identifico 3 grupos cuja principal característica é não ser democrático na essência. Podem até aceitar  viver na democracia, mas ela está sempre devendo a eles e incorporando  grupos, sempre vistos como perigosos, por mais tímida que esta incorporação seja.

 O primeiro grupo é formado pelas forças armadas. Uso minúsculas não por ironia ou desrespeito, mas porque elas vão muito além do que se convencionou chamar Forças Armadas, ou seja, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. É formado pelo conjunto de servidores públicos (na ativa e aposentados) detentores de armas de fogo letais e por ex-policiais, muitas vezes expulsos destas próprias forças. Aí estão não só militares estrelados de alta patente – detentores, no atual governo, de cargos que engordam contracheques, quando não o bolso diretamente -, mas também militares de baixa patente, principalmente das forças militares estaduais, ressentidos, mal pagos, mal preparados, que matam e morrem a rodo de norte a sul do país. 

As Forças Armadas engoliram a Constituição de 1988 porque estavam, no momento, desmoralizadas, mas não engoliram a tímida e tardia Comissão da Verdade. O sistema político estava indo longe demais, mesmo a centro-direita era excessivamente democrática. Apoiar um parvo que eles sabiam exatamente quem era lhes dava um sentimento de revanche, de volta ao poder via eleitoral. Este grupo não se interessa por democracia, ela só atrapalha e incomoda. Participar de um golpe de estado, para manter Bolsonaro e ganhar ainda mais poder e vitórias econômicas, não deve parecer para a maioria um mau negócio. O que não sabemos é o peso que esta ideia tem dentro de cada uma das Forças Armadas. 

O segundo grupo não democrático é composto por dois subgrupos: os donos do agronegócio no Brasil, que se gestaram ao longo de décadas na UDR e dentro do Congresso Nacional, e o chamado centrão da Câmara de Deputados, parte deles descendentes diretos da ditadura civil-militar. Eles muitas vezes se confundem, se misturam com grileiros e ladrões de terras indígenas – desprezam os ambientalistas e têm um nacionalismo às avessas, do tipo “a Amazônia é nossa, acabaremos com ela se quisermos”.  O grupo é particularmente importante, pela dupla filiação com o mercado de comodities internacional e pela sustentação de uma não democracia no Congresso Nacional.  Não falo de um bando de deputados do baixo- clero, meio folclóricos, que se aproveitaram da avalanche do PSL em 2018, mas de deputados de muitos partidos e regiões que, paradoxalmente, não têm particular apreço pela democracia e aceitariam de bom grado um arremedo de legislativo.

A atuação do presidente da Câmara de Deputados em relação à PEC do voto impresso é um bom exemplo da forma como este grupo age. Bolsonaro e seu grupo não esperavam que a PEC fosse aprovada, mas desejavam que ela criasse na opinião pública um clima de desconfiança, capaz de lhes dar mais um argumento para um possível golpe em 2022. O que fez Arthur Lira? Construiu um cenário para Bolsonaro surfar. Esta foi a única razão pela qual ele encaminhou ao Plenário uma PEC que havia perdido por 23 a 11 votos na Comissão Especial. Em um discurso construído para alimentar teorias conspiratórias é muito melhor ter tido 229 votos a favor de uma causa do que 11.  E isto não é coisa de matuto que chegou à Câmara por acaso, mas trama de velhas raposas, que defendem interesses muito poderosos.

O terceiro grupo, não menos importante, é formado por setores classe da média e por deputados evangélicos. Por que motivo coloco dois grupos que parecem tão díspares juntos? Pelo simples fato de que não são tão dispares como parecem. Comungam duas características fundamentais: um moralismo, que abrange desde fanáticos religiosos até o cinismo da família patriarcal, e o pânico de perder privilégios, como as isenções de impostos das Igrejas ou o exclusivismo da branquitude nas universidades e nos melhores postos de trabalho. Para estes, democracia se assemelha muito a comunismo, já que ambos falam em igualdade, um dos pesadelos dos setores conservadores. Vastos setores da classe média e da Igreja (na época, parte considerável da Igreja Católica) foram grandes apoiadores do golpe de 1964.  Não há razão para pensar que não possam repetir a aposta.

Dai que não podemos nos iludir com um Brasil democrático, com um povo oprimido pelo pavor de um novo golpe civil-militar.  A associação que as classes populares fazem com Lula tem muito pouco de sentimento democrático, de cultura democrática.  Tem muito a ver, tem quase tudo a ver, com a justa melhoria de vida que tiveram durante seus governos.  

As classes populares não são anti-democráticas como os grupos acima referidos, mas são conservadoras nos costumes, são religiosas – hoje mais do que nunca – e não têm fidelidade ideológica. São, antes de tudo, pobres e injustiçadas, têm necessidades emergenciais e, por isso, são facilmente interpeladas por populistas de extrema-direita. Vivem em condições muito precárias e a ideia da ordem é bastante bem recebida. Convencer estas classes de que só a democracia garante uma possibilidade real de melhoria nas suas vidas é uma tarefa árdua. Infelizmente, na história do Brasil o regime democrático foi exceção e não a regra. 

Mas, dirá o leitor e a leitora, Luis Inácio Lula da Silva tem 56% dos votos no 2º turno, conforme as últimas pesquisas eleitorais! Sim, é verdade, e isto aponta para rupturas importantes na hegemonia da direita entre os eleitores. Lula tem uma história vitoriosa como presidente, há uma memória que está sendo reatualizada e faz muito sentido, porque ela contém uma vida melhor para a grande maioria das camadas populares, para as universidades, para as ciências, para a indústria nacional. Mas talvez isto seja a mais forte razão para temermos um golpe com o apoio ou o silêncio “piedoso” dos diversos grupos arrolados acima. Não há razão para pensar que um golpe é inevitável, nem que uma aventura golpista teria sucesso garantido, mas, sim, há razões para temê-lo. 

Uma grande aliança contra o golpe urge ser organizada, mas que seja verdadeiramente antagônica ao descalabro do governo Bolsonaro e seus apoiadores, os de primeira hora, os arrependidos, os que continuam no baile. A luta pela democracia deve ser ao mesmo tempo ampla e radical. A radicalidade deve ser o parâmetro que limita a amplitude. De nada adianta uma luta ampla com alianças que cobrarão, logo ali, a  manutenção dos mesmos privilégios e as mesmas exclusões para manter o apoio.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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