Opinião
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27 de julho de 2021
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08:45

Nas ruas (Coluna da APPOA)

Ato contra o governo Bolsonaro em Porto Alegre, dia 24 de julho. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Ato contra o governo Bolsonaro em Porto Alegre, dia 24 de julho. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Robson de Freitas Pereira (*)

traga o mundo mais perto de onde você quer chegar”
Banda Maglore – Vamos prá rua. Compositor: Teago de Oliveira

As manifestações estão nas ruas. Tivemos uma no fim de semana passado. Outras virão, reconstruindo o saudável exercício da cidadania. Escrevo saudável, pelo restabelecimento de uma conexão com o espaço que se situa além dos muros, das janelas dos apartamentos e das grades. Ainda estamos na pandemia e a cifra que ultrapassou os 500 mil mortos, escancara o risco, e a mentira de quem não honrou o mandato de governo que recebeu. Porém, com o lento, mas efetivo processo de vacinação começando a fazer efeitos, tomando os cuidados devidos , é possível se reencontrar com os amigos, os parentes ou compartilhar o espaço público com desconhecidos, sem sentir-se culpado ou acusado de ser um contaminador ambulante.

Ir às ruas ainda é difícil, mas cada vez mais urgente, desejado. Importante levar em conta alguns fatores que possibilitam e, simultaneamente, podem inibir sair de casa e exercitar esta mudança de espaço e convivialidade, onde o íntimo e o social encontram sua articulação.

Em função da pandemia, fomos obrigados a nos adaptar a uma restrição do espaço. Ficar mais em casa, sair somente por necessidade – de trabalho ou abastecimento e repetir a higienização detalhada depois de cada saída. Isto teve como um dos efeitos a adaptação do corpo a uma convivência mais intensa e com menor espaço. O lar , home, lugar familiar de proteção tornou-se muito mais presente (para o bem e para o mal). O uso obrigatório da máscara também levou a um reordenamento de nossa percepção. Quem nunca sentiu um incômodo para respirar, uma avaliação da distância alterada para caminhar ou dirigir “atire a primeira pedra”.

Ao voltar às ruas os efeitos deste tempo de confinamento e distanciamento social se fazem sentir. Torna-se necessária outra adaptação; o corpo se acostumou e nossa subjetividade resiste a perder hábitos adquiridos, mesmo obrigatoriamente.  Mesmo que alguns já estivessem sentindo a casa como uma prisão domiciliar, onde os conflitos se intensificaram, sair do espaço conhecido é um desafio; pois não é fácil perder um gozo adquirido.

Por isto contamos com os outros; porque os desafios políticos só se ultrapassam na convivência com os semelhantes. Paradoxal condição humana; pois como dizia Freud, os outros são também nossa maior fonte de mal-estar. Assim, da ameaça do contágio, soma-se o desafio de superar o medo do contato com os outros. Principalmente quando os efeitos sociais da crise são visíveis. Mais gente dormindo nas ruas, mais pedintes nas esquinas, nos transportes. “Tenho fome”, “estou sem trabalho” são alguns dos tópicos lidos e ouvidos. Ultrapassar o medo, convivendo com a diferença e demonstrar solidariedade. Estamos postos à prova.

Sabemos que esta dificuldade não é de hoje. Ela nos ultrapassa, cultural e historicamente. Bem antes da pandemia já temíamos por nossa sorte em função da violência urbana, ainda mais depois das 22 horas. Acrescente-se que nos últimos anos também ficou associada ao risco do aberto confronto político. Leia-se a transformação dos adversários em inimigos a serem abatidos.

 Apesar disto, e por isto mesmo, urge reconhecer o “desconhecido familiar” (unheimliche) que nos habita. O lugar que nos acolhe, a casa é indissociável do seu contraponto, a rua. A intimidade e a sociabilidade estão articuladas e como lidamos com isto é o índice de nossa civilidade. Importante, reafirmar: há séculos que as manifestações de rua vem  se restringindo por razões culturais, religiosas e pela forma como ocupamos o espaço urbano. Muitas vezes não reconhecendo que a noção de propriedade vai além dos muros de nossa casa. O espaço público é nossa responsabilidade. E responsabilidade não se confunde com solenidade, ou culpa.

 Ainda bem que as manifestações, além dos discursos específicos, podem trazer músicas, cores, fantasias, invenções das mais diversas, pois elas desafiam e fazem recuar as iniciativas destrutivas. Um pensamento totalitário não suporta reunião nas ruas, sejam elas políticas, de festa ou de qualquer outra ordem que se queira ou possamos construir em direção a uma vida mais interessante. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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